Se “eu é um outro”, como disse o poeta francês Arthur Rimbaud (2009), então não é muito difícil imaginar um eu escritor que dialoga com um eu fotógrafo, sendo que um é também o outro do outro. Quer dizer, talvez seja menos difícil descrever do que explicar: nesse conjunto de publicações, escritor e fotógrafo, escritora e fotógrafa, convivem na mesma pessoa, propondo assim um diálogo consigo, uma conversa com o espelho.
Fotomontagem de Jorge de Lima que abre o livro A pintura em pânico: fotomontagens, publicado originalmente em 1943, e reproduzida no catálogo da exposição homônima apresentada pela Caixa Cultural, em 2010.
Reencontramos Rimbaud na primeira frase da Nota liminar escrita pelo poeta moderno Murilo Mendes para o livro A pintura em pânico: fotomontagens (1943), de Jorge de Lima. “Desarticular os elementos”, diz o conselho de Rimbaud recuperado por Mendes. E basta folhear o livro do médico, poeta e artista plástico alagoano para notarmos que o conselho foi seguido à risca, em fotomontagens que dialogam não tanto com o universo da fotografia, mas com os de outras linguagens das artes visuais, como a colagem surrealista, o desenho e, evidentemente, a pintura. A pintura em pânico trazia a público o resultado dos experimentos de Jorge de Lima com a técnica da fotomontagem, então ainda pouco conhecida no Brasil, mas bastante utilizada na Europa por dadaístas, construtivistas e, principalmente, surrealistas, como Max Ernst, que inspira Jorge de Lima. Em entrevista à revista O Cruzeiro, em 1938, recuperada por Priscila Sacchettin (2018), o próprio poeta resume a influência de Ernst e dos surrealistas e também a sua prática “fotopoética” na elaboração das montagens de A pintura em pânico, oferecendo-nos um ponto de vista que, em consonância com o de Maureen Bisilliat apresentado anteriormente, propõe uma espécie de equivalência poética entre imagem e poesia:
Vocês vejam: cada fotografia dessas vale um poema, não vale? Pois é a intenção de Max Ernst. Com diversos elementos que isolados nada significam, produzir um conjunto que tem o dom de provocar uma sensação poética. […] Ernst e seus seguidores chamam isso de gravuras suprarrealistas. Eu fiz fotografias com uma direção lírica e romântica. Como faço isso? Ora, muito simplesmente: pego uma porção de objetos, de coisas, de ideias, uma revista, um jornal, uma escultura, elementos que isolados não têm a menor significação. Junto e produzo alguma coisa que podemos chamar de um poema. (LIMA apud SACCHETTIN, 2018, n.p.)
O livro teve tiragem de 250 exemplares assinados pelo autor, sendo que a maior parte das obras originais foi perdida. Em 2010, a Caixa Cultural do Rio de Janeiro apresentou uma exposição, com curadoria de Simone Rodrigues, a partir de reproduções das 41 fotomontagens que compõem o livro, além de 11 ampliações de fotografias pertencentes ao acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. As imagens que ilustram este segmento integram o catálogo daquela exposição. Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 1939 e reproduzido neste catálogo, Mário de Andrade dá indícios do êxtase que provocavam as inúmeras possibilidades da fotomontagem: “as nossas tendências mais recônditas, nossos instintos e desejos recalcados, nossos ideais, nossa cultura, tudo se revela nas fotomontagens” (apud RODRIGUES, 2010, p. 19).
Páginas de A pintura em pânico: fotomontagens, de Jorge de Lima, publicado originalmente em 1943,
e reproduzidas no catálogo da exposição homônima apresentada pela Caixa Cultural, em 2010.
Ao lado de cada uma das 41 imagens, um verso-legenda ajuda a compor o enigma: longe de pretender explicar ou descrever a imagem, as legendas compõem com o discurso visual uma espécie de unidade poética, ou um “dístico”, como os definiu o próprio autor (o dístico representa, na poesia, uma estrofe mínima, composta por apenas dois versos). O primeiro dístico do livro traz, de um lado, o verso “E entre o mar e as nuvens foram surgindo as primeiras formas”; de outro, uma montagem em que sobressai o que parece ser uma esponja marítima. No segundo dístico, que dá sequência a esse, o verso “e as primeiras fecundações (contra todas as ordens)” é acompanhado de uma silhueta humana que representa o sistema circulatório (ou nervoso), recortada e disposta sobre um céu acima das nuvens, trazendo à superfície tanto o repertório médico quanto o religioso, um dos grandes temas do poeta.
Páginas de A pintura em pânico: fotomontagens, de Jorge de Lima, publicado originalmente em 1943,
e reproduzidas no catálogo da exposição homônima apresentada pela Caixa Cultural, em 2010.
Voltemos ao argumento que abre esta coleção de convívios: a ideia de que nestas obras os discursos textual e visual funcionam como ferramentas de uma espécie de conversa com o espelho. A explosão de editoras e publicações independentes ocorrida nos últimos anos gerou também uma enorme quantidade de trabalhos em que artistas-poetas (ou “poetartistas”) experimentam diálogos entre os discursos textual e visual. Assim como a fotomontagem para Mário de Andrade, talvez as publicações independentes e/ou artesanais sejam veículos capazes, hoje, de revelar “as nossas tendências mais recônditas, nossos instintos e desejos recalcados”, como disse Mário. Nos exemplos a seguir, encontramos duas linhas de tendência principais: de um lado, uma prática fotopoética semelhante à de Jorge de Lima, na qual texto e imagem jogam também com o espelho, buscando por vezes trocar de lugares entre si; de outro, o livro enquanto registro de um processo, narrativa de investigação autoral que joga com formas diversas.
Seu retrato sem você (2018), de Tatiana Eskenazi.
Seu retrato sem você (2018), de Tatiana Eskenazi, está no primeiro grupo: é um livro de poemas que nasce de um trabalho fotográfico. Duas fotografias de autoria de Eskenazi ilustram as guardas do livro, funcionando como parênteses que se abrem e se fecham, guardando dentro de si reflexões poéticas sobre os afetos, os amores perdidos, a memória familiar, a ausência e o luto. A impressão em linotipo e a costura manual contribuem com uma certa artesania íntima no trato da autora com o espelho. Em Vermelho (2015), a artista visual Paloma Mecozzi mescla pinturas e fotografias a fragmentos poéticos e transparências que promovem um entrelaçamento entre as páginas. O título e o tom avermelhado que predomina no livro reverberam elementos do cotidiano como a carne, o desejo e a intimidade.
Vermelho (2015), de Paloma Mecozzi.
No segundo grupo podem estar trabalhos como Offline (2018), de Ana Rovati, e O corpo neutro (2015), de Filipe dos Santos Barrocas. No primeiro exemplo, a autora parte de um experimento – passar um ano sem utilizar a internet – para questionar “as relações contemporâneas ditadas pela lógica da hiperconexão”, como afirma Rovati na descrição do projeto. O livro é composto por 14 textos, trechos de cartas e 50 imagens que relatam os impactos do experimento na vida cotidiana. Já O corpo neutro resulta de uma pesquisa acadêmica na área de poéticas visuais, que teve como tema, segundo o autor, “o corpo neutro do referente na imagem fotográfica”. O resultado é um conjunto de narrativas construídas a partir de retratos de família, em diálogo com outros autores. Tais narrativas são encadernadas separadamente em cinco volumes reunidos em uma luva em papelão. Assim como no trabalho de Rovati, o livro de Barrocas funciona como uma espécie de pasta-arquivo, que reúne formas diversas, como fotografias digitais, impressões fotográficas antigas, do acervo familiar, além de textos próprios e de outros autores. Nesses convívios, como em outros exemplos contemporâneos, a montagem do personagem-autor diante do espelho parece se dar menos pelo “recorta e cola” que empolgava Jorge de Lima e Mário de Andrade e mais pela coleção e pelo sequenciamento de fragmentos do cotidiano – ainda assim, recortes.
Offline (2018), de Ana Rovatti.
O corpo neutro (2015), de Filipe dos Santos Barrocas.
A diversidade de convívios possíveis ilustrada acima é um pequeno exemplo dos inúmeros eus e outros que podem habitar a mente criativa de um ou uma artista. Para além do óbvio, se pode haver algo de comum entre esses trabalhos, talvez seja uma espécie de gesto performático em que texto e imagem apontam o dedo um para o outro, ao mesmo tempo denunciando os movimentos do seu outro e revelando o seu próprio eu.
Paulo Fehlauer
Fotógrafo e escritor, doutorando em Teoria e História Literária na Unicamp
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REFERÊNCIAS
RODRIGUES, Simone. A pintura em pânico: fotomontagens. Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2010.
RIMBAUD, Arthur. Correspondência. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 2009.
SACCHETTIN, Priscila. Fotomontagens de Jorge de Lima: A pintura em pânico. In: Studium, v. 39. Campinas: Instituto de Artes / Unicamp, 2018. Disponível em <https://www.studium.iar.unicamp.br/39/07/index.html>. Acesso em out. 2023.
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SUGESTÕES
A lista abaixo reúne publicações que, em uma primeira leitura, possuem elementos que as aproximam desta constelação denominada Diálogos. Inclui títulos catalogados na Base de Dados de Livros de Fotografia e outras obras não catalogadas, que compõem o acervo particular deste autor. Esse índice é apenas uma sugestão, nunca uma categorização.
A pintura em pânico : fotomontagens : Jorge de Lima – Simone Rodrigues
Algumas pistas ou Poemas perdidos – Vanessa Neuber
Aprendendo a morrer – Marcelo Garcia
Caderno de desviagem – Lanussi Pasquali
Carto-tipo(grafias) da transgressão – Andresa Augstroze
Cidade dos afetos – Ricardo Rodrigues
Cidades perdidas – Lucas Cureau
De-verso – Zeca Coelho
Diante da sombra – Ronaldo Entler
Dois meninos de Kakuma – Marie Ange Bordas
Drão de Roma [dezembro caiu] – Diógenes Moura
Drommer om Skov – Samy Sfoggia
Errâncias – Décio Pignatari
Escritos esparsos – Cleudemar Alves Fernandes
Fazendas paulistas do ciclo do café : 1756-1928 – Cândida Arruda Botelho
Flashes de percepção : um olhar apreciativo para o cotidiano a partir da fotografia contemplativa – Vanessa Prata
Frutas maduras – Rapha Dutra
História de 13 fotos – Francisco Aszmann
Infinisso – Mayra Lins
Invisíveis – Fernando Braune
Lágrimas perdidas – Marcelo Greco
Mário de Andrade : etnógrafo / fotógrafo / poeta – Adrienne Firmo
Mário de Andrade : fotógrafo e turista aprendiz – Instituto de Estudos Brasileiros
Matinal – André Leite Coelho
Matrioska – Ella A.
Natureza minha – Silmara Luz
Nino Cais : poemas e canções – Nino Cais
O anti acarajé atômico : dias pandêmicos – Diógenes Moura
O falcão peregrino – Feco Hamburger
O percurso de um olhar – Luiz Carlos Felizardo
O poeta insólito : fotomontagens de Jorge de Lima – Jorge de Lima
Os corpos e os dias – Laura Erber
Para cada dia que senti sua falta – Patricia Borges
Para onde vão os sonhos quando eles terminam? – Marcus Vinícius Xavier de Oliveira
Paraísos orgânicos em artérias expostas – Vanessa Neuber
Patinhas – Filmes do Triunfo
Pequenino atlas do desafino : um ensaio surreal-esquizofotoanalítico – Carlos Nigro
Perecível – Felipe Camilo
Poesia fotografada – Flávio Meyer
Quando presto atenção – Georgia Barcellos
Relação-ruína – Isabella Athayde
Rifle – Rico Lopes
Sargaço – Tassyla Queiroga
Saudade do que nem fomos : entre a Consolação e o Japão – Mariana Queiroz
Sertão, Seridó, sentidos – Maria Elza Bezerra Cirne
Sobre.voo – Ciça Calasans
Um estreito chamado horizonte – Raimundo Gadelha
Vermelho – Paloma Mecozzi
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