Maureen Bisilliat nunca encontrou Euclides da Cunha. Em 1931, quando nasceu a fotógrafa, o escritor já estava morto havia 22 anos. Essas, no entanto, talvez sejam afirmações materialistas demais para os dois universos pelos quais nos aventuramos aqui. Nascer, morrer e encontrar podem ganhar significações mais instigantes ao suspendermos o tempo cronológico em benefício de temporalidades mais fluidas, como vêm a ser a da literatura e a da imagem.
Sertões: luz & trevas (2. ed., 1983), de Maureen Bisilliat.
Vídeo de Rafael Bosco Vieira.
Em Sertões: luz & trevas (1983 [1982]), as imagens de Maureen dão nova vida ao texto de Euclides – e vice-versa, já que as fotografias também viram outras quando são lidas pelo texto. Nas palavras da fotógrafa, na mesma apresentação, as imagens do livro, “vistas isoladamente, emudecem; dispostas em cadência de luz e sombra, retomam a vida, desvendando pelo olhar o coração”. Quem, senão aquele cujo olhar desvenda o coração, seria capaz de imaginar A terra, primeira parte de Os sertões, matizada pelo tom azul profundo, quase marinho, das imagens que abrem o livro? Para compreender tal olhar, basta que leiamos a descrição de Euclides um pouco adiante: “A noite sobrevém em fogo; a terra irradia como um sol escuro, porque se sente uma dolorosa impressão de faúlhas invisíveis; mas toda a ardência reflui sobre ela, recambiada pelas nuvens” (BISILLIAT, 1983, p. 31). Em artigo recente, Miguel Del Castillo, curador de uma exposição que propôs esse recorte literário sobre a obra de Bisilliat, conta que parte das imagens do livro foram, na verdade, refotografadas pela autora com uma lente macro, a partir de ampliações em branco e preto e folhas de contato. Com esse dado em mente, poderíamos pensar, então, na ardência daquele sol escuro de Euclides não só recambiada, mas também recolorida, pelas nuvens e pelo olhar de Maureen.
Página de Sertões: luz & trevas, de Maureen Bisilliat,
na reedição publicada pelo Instituto Moreira Salles, em 2019.
Não será arriscado afirmar que Bisilliat é a fotógrafa que mais explorou em imagens o universo literário brasileiro – Euclides da Cunha em Sertões: luz & trevas (1982), Guimarães Rosa em A João Guimarães Rosa (1969), João Cabral de Melo Neto em O cão sem plumas (1984), Drummond em A visita (1977), Jorge Amado em Bahia amada/Amado (1996), Jorge de Lima em Pele preta (2011), entre outros. Certamente não é a única; falarei a seguir de outros exemplos.
Em Visões de um poema sujo (2016), o fotógrafo maranhense Márcio Vasconcelos vai atrás daquilo que sobrevive na paisagem da São Luís do conterrâneo Ferreira Gullar, que escreveu o Poema Sujo no exílio, em Buenos Aires, em 1975. Décadas depois do desabafo do poeta, o adjetivo “sujo” ganha também, nas imagens de Vasconcelos, a multiplicidade de sentidos atribuída ao termo por Gullar: sujo como a miséria, sujo como o linguajar obsceno, a boca suja. Sujo “porque buscava, em sua alquimia, transformar toda essa matéria indigna em poesia” (GULLAR, 1998, p. 388). E sujo, por fim, “porque estilisticamente não obedecia a nenhuma norma.” Ao reler em imagens o poema de Gullar, Vasconcelos compõe o mesmo caldo sujo e mestiço brasileiro no qual convivem o sangue, o sexo, a religião, a sarjeta, mas também o cristal, a banana madura, a chuva: “Era a vida a explodir por todas as fendas da cidade / Sob as sombras da guerra” (GULLAR, 2013, p. 35).
Imagens que integram Visões de um poema sujo (2016),
de Márcio Vasconcelos.
Da poesia à música (também uma forma de literatura). Em Céu de Luiz (2013), o cearense Tiago Santana percorre um outro sertão, não aquele dos romances de Euclides, Rosa, Cabral, Suassuna, mas o sertão sonoro e luminoso de Luiz Gonzaga. E é precisamente a luz que sobressai nas largas imagens em branco e preto herdeiras de uma tradição documental clássica. Acompanhado por um texto de abertura escrito pelo jornalista Audálio Dantas e por dois únicos fragmentos de canções do Gonzagão (“Assum Preto” e “Asa Branca”), Céu de Luiz parece propor que façamos, nós, leitores brasileiros, a ponte entre o sertão das imagens de Santana e a presença latente do repertório de Luiz Gonzaga na nossa própria memória. Santana e Dantas também publicaram em parceria o livro O chão de Graciliano (2007), sobre a obra de Graciliano Ramos. O fotógrafo também é autor de Patativa do Assaré: o sertão dentro de mim (2010), em parceria com Gilmar de Carvalho.
Céu de Luiz (2013), de Tiago Santana e Audálio Dantas.
E é também a partir de uma música que o artista Ton Zaranza, nascido no Ceará e vivendo no Rio de Janeiro, nos provoca a olhar para as fotografias do fotolivro Alucinação (2018). Impressos em letras grandes logo nas primeiras páginas, os versos da canção homônima de Belchior contaminam a leitura das imagens que vêm em seguida: fotografias em branco e preto de um cotidiano urbano (“meu delírio é a experiência com coisas reais”), desacompanhadas de qualquer legenda (“eu não estou interessado em nenhuma teoria”).
Alucinação (2018), de Ton Zaranza.
Um último exemplo entre tantos possíveis é Cada dia meu pensamento é diferente (2013), organizado por Tatiana Altberg, fotógrafa, educadora e coordenadora do projeto Mão na Lata, que realiza oficinas de fotografia pinhole com adolescentes da Maré, no Rio de Janeiro. O livro reúne fotografias produzidas nessas atividades, entre elas o ensaio Rio de Machado, que tem como fio condutor o universo poético e biográfico de Machado de Assis. Como nas releituras literárias de Maureen Bisilliat, o livro propõe, assim, mais um encontro entre tempos e espaços dilatados: os de Machado e os de cada um dos jovens fotógrafos e fotógrafas que assinam o ensaio coletivo, fazendo com que as páginas impressas se assemelhem às folhas de um mapa imaginário sobre o qual inúmeras cidades de inúmeras épocas coexistem. Além desse livro, Altberg também publicou Mão na lata & Berro d’Água: um ensaio (2006), que se utiliza da mesma estratégia e se inspira no romance A morte e a morte de Quincas Berro D' Água, de Jorge Amado.
Fotografias pinhole que integram o ensaio coletivo Rio de Machado,
criado sob coordenação de Tatiana Altberg.
Nos exemplos acima, e também na lista de releituras indicadas a seguir, percebemos que o trabalho feito por essas fotógrafas e fotógrafos propõe uma espécie de tradução entre dois códigos. O que fazem, aparentemente, é apropriar-se de um conjunto de imagens poéticas construídas com palavras, para então reimaginá-las na forma de imagens visuais (e igualmente poéticas). De certa forma, todas essas “releituras fotográficas” 1 ajudam a ilustrar a proposta feita pelo poeta e tradutor Haroldo de Campos (2004, p. 35), que entendia a tradução como uma nova e autônoma forma de criação: em suma, uma transcriação.
Paulo Fehlauer
Fotógrafo e escritor, doutorando em Teoria e História Literária na Unicamp
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NOTA
1. Em vez do termo Releitura, a Base de Dados de Livros de Fotografia utiliza o vocábulo Tradução fotográfica para identificar publicações que se inspiram em obras artísticas preexistentes (como filmes, músicas, obras literárias, etc.) e as transpõem para o campo da fotografia. O termo também abarca outros tipos de publicações, como aquelas que se inspiram no conjunto da obra ou no estilo característico de um determinado(a) autor(a), gênero ou movimento artístico, e as que propõem uma transposição de métodos e padrões comumente explorados em outros meios e linguagens (como literatura, cinema, escultura, arquitetura, etc.) para a fotografia.
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REFERÊNCIAS
BISILLIAT, Maureen. Sertões: luz & trevas. 2. ed. São Paulo: Raízes, 1983.
CAMPOS, Haroldo de. Da Tradução como Criação e como Crítica. In: Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2004.
GULLAR, Ferreira. Poema Sujo. 15. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. p. 35.
_______________. Entrevista. Revista Poesia Sempre, Ano 6, N. 9, p. 377-420, mar. 1998. Disponível em < https://www.bn.gov.br/producao/publicacoes/revista-poesia-sempre-ano-6-n9>. Acesso em mai. 2022.
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SUGESTÕES
A lista abaixo reúne publicações que, em uma primeira leitura, possuem elementos que as aproximam desta constelação denominada Releituras. Inclui títulos catalogados na Base de Dados de Livros de Fotografia e outras obras não catalogadas, que compõem o acervo particular deste autor. Esse índice é apenas uma sugestão, nunca uma categorização.
18ª Bienal Internacional de São Paulo / outubro-dezembro 1985 : sala especial "O Turista Aprendiz" – Maureen Bisilliat
A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro – Zeca Fonseca e Rubem Fonseca
A cidade por Bandeira – Benoît Fournier
A delicadeza essencial ou... – Julio Cesar Cardoso
A João Guimarães Rosa (1. ed.) – Maureen Bisilliat
A João Guimarães Rosa (3. ed.) – Maureen Bisilliat
A Margem – Garapa
Amarelo {chão} – Âmar Souki
Bahia Amada Amado – Maureen Bisilliat
Brasil, país do futuro : um livro sobre o livro – Carla Zaccagnini
Cada dia meu pensamento é diferente – Tatiana Altberg (org.)
Céu de Luiz – Tiago Santana e Audálio Dantas
Chance ao acaso – Marina Marchesan
Cosmópolis : São Paulo - 1929 : oito reportagens de Guilherme de Almeida – Guilherme de Almeida e Luciana Cattani
De longe muito longe desde o início – Fernanda Grigolin
Do reino encantado – Gustavo Moura
Funes – Lucas Eskinazi
Instantâneos de um Japão incomum : dissertações sobre a memória – Maureen Bisilliat
Jardim Botânico do Rio de Janeiro – Tom Jobim e Zeka Araújo
Jardins e riachinhos – Luiz Cláudio Marigo
Jorge ressignificando Amado – Valdemir Cunha
Mão na lata e berro d'água : um ensaio fotográfico sobre obra de Jorge Amado – Tatiana Altberg (org.)
Nas trilhas do Rosa : uma viagem pelos caminhos de Grande Sertão: Veredas – Walter Firmo e Fernando Granato
O cão sem plumas – Maureen Bisilliat
O chão de Graciliano – Tiago Santana e Audálio Dantas
Patativa do Assaré : o sertão dentro de mim – Tiago Santana e Gilmar de Carvalho
Pedras – Helena Rios
Pele preta : 23 fotografias de Maureen Bisilliat, São Paulo e São José do Rio Pardo, início da década de 1960 – Maureen Bisilliat
Porto Alegre : retratos poéticos de uma cidade – Leonid Streliaev
Ser Tão gerais – Alexandre Guzanshe
Sertões : luz e trevas – Maureen Bisilliat
Sombra única – Marcelo Garcia
Tabacaria – Anderson Marques e Larissa Rocha
Travessia – José Diniz
Um mundo além das palavras : o campo de Daria Nur – José João Name
Veredas – Araquém Alcantara
Viagem à Bahia do cacau – Valdemir Cunha
Vidas secas : 70 anos – Evandro Teixeira
Visões de um poema sujo – Márcio Vasconcelos
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Fotografia e Literatura (parte 2): Releituras: tempos
dilatados
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delírios, haicais e perfurações
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outro”
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