O poeta paulistano Roberto Piva conta em uma entrevista que guardou os poemas do livro Paranoia (1963) por mais ou menos um ano, até ser apresentado ao artista plástico e fotógrafo Wesley Duke Lee: “ele ficou entusiasmadíssimo com a poesia, gostou demais, entrou em transe. E saiu por São Paulo fotografando a cidade a partir dos poemas” (apud COHN, 2009). Misto de fracasso de crítica com sucesso de público, Paranoia é o primeiro livro da carreira de Piva, poeta inclassificável, que estreara em publicações dois anos antes no livro Antologia dos Novíssimos (1961), editado por Massao Ohno. O Instituto Moreira Salles reeditou Paranoia em 2000 e também em 2009, e é nessa penúltima edição que se baseiam os comentários que faço neste texto.
Segunda edição de Paranoia (2000), de Roberto Piva, publicado
originalmente em 1963, com fotografias de Wesley Duke Lee.
Paranoia começa na capa, com uma fotografia distorcida, de contornos expressionistas, em diálogo explícito com o título do livro. Passadas as devidas introduções, começamos a tatear um percurso que logo se transforma em uma perambulação alucinatória pela cidade de São Paulo. Antes mesmo de que se descortine o primeiro verso, vemos a fotografia de um passo acrobático, o corpo contorcido de uma bailarina que segura detrás da cabeça a ponta do pé e o olhar concentrado do homem que a sustenta no ar. Entretanto, não adianta buscar nas páginas seguintes qualquer referência explícita a essa imagem: nos primeiros versos do poema “Visão 1961”, o que encontramos são palavras corporais, sim, mas também mentes “sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo / invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma flor de saliva”.
Fotografia de Wesley Duke Lee que integra Paranoia (2000), de Roberto Piva.
Sempre será possível imaginar associações, mas suspeito que, assim como nas outras imagens e versos que se seguem, quaisquer interpretações que façamos não passarão de alucinações “na ponta dos teus olhos”, como diz o derradeiro verso do livro. Mais do que correspondências, o que o livro propõe é a transmutação da paranoia alucinatória e antropófaga do poeta no transe andarilho e gargarejante do fotógrafo e, de volta: versos transfigurados em fotografias e vice-versa, mesclados no caldo turbilhonante da São Paulo dos anos 1960 – tanto que as páginas parecem incapazes de contê-los.
Foi também por meio de terceiros que um outro poeta, o curitibano Paulo Leminski, conheceu Jack Pires, fotógrafo paulista com quem desenvolveria um diálogo inédito: o livro Quarenta clics em Curitiba (1990 [1976]), com poemas curtos de Leminski acompanhados de fotografias de Pires, que vinha registrando situações cotidianas da capital paranaense. Em certo sentido, ainda que ambos passeiem por cenas e personagens urbanos e em épocas não muito distantes, Quarenta clics pode ser lido como uma perfeita antítese de Paranoia – do processo de criação à linguagem utilizada, mais pontual e silenciosa do que os jorros alucinados de Piva e Lee –, o que talvez ecoe o imenso contraste que havia entre a provinciana Curitiba de então (com pouco mais de 600 mil habitantes) e a fervilhante São Paulo de uma década atrás (cuja população já alcançava os 5 milhões). Mas é claro que não se trata só disso.
Quarenta clics em Curitiba (2. ed., 1990), de Paulo Leminksi e Jack Pires.
Quarenta clics em Curitiba é composto por lâminas soltas, sem paginação, cada uma delas trazendo um poema curto de Leminski e uma fotografia de Pires, fotógrafo com anos de trabalho na imprensa e dono de um olhar tipicamente flâneur, interessado pelas cenas comezinhas do cotidiano. Além disso, a obra foi construída a posteriori, a partir da edição e combinação de poemas e fotografias já existentes, como relata o jornalista Toninho Vaz, autor de uma biografia de Leminski:
foi assim que certa vez ele [Pires] apareceu na Cruz do Pilarzinho com dezenas de fotos 18 x 24, que seriam espalhadas pelo chão para permitir uma visão global do material. Leminski buscou uma pasta de poemas no escritório e, junto com Alice [Ruiz], passaria horas selecionando os textos que se identificavam melhor com as fotos. (VAZ, 2001)
Sobre as aproximações entre texto e imagem em Quarenta clics, convém aqui lembrar os paralelos propostos por Roland Barthes entre o haicai e a fotografia, visto que tanto Barthes quanto Leminski foram grandes apaixonados por essa forma de poesia vinda do Japão e que se caracteriza pela concisão, sendo formada, originalmente, por três versos de métrica precisa (na língua japonesa): cinco, sete e cinco sílabas, respectivamente. Para Barthes, em O império dos signos (2007, p. 101), o haicai seria uma arte “contradescritiva”, ou seja, que nunca descreve – pelo contrário, como dirá Barthes em A câmara clara, tanto no haicai quanto na fotografia
tudo está dado, sem provocar a vontade ou mesmo a possibilidade de uma expansão retórica. Nos dois casos, poderíamos, deveríamos, falar de uma imobilidade viva: ligada a um detalhe (a um detonador), uma explosão produz uma estrelinha no vidro do texto ou da foto: nem o haicai nem a foto fazem “sonhar”. (BARTHES, 1984, p. 78)
Uma imobilidade viva: a concisão do haicai como espelho do punctum fotográfico – o detalhe que fere e arrebata o observador, na teoria da fotografia proposta por Barthes. Os poemas de Quarenta clics em Curitiba não são, a rigor, haicais, mas a leitura de Barthes, considerando ainda a influência que o haicai teve na escrita do curitibano, não deixa de ser iluminadora para apreendermos o sentido de um título que parece querer condensar os múltiplos sentidos do livro de Leminski e Pires, reunindo em um mesmo gesto (o clic) poesia e fotografia, texto e imagem.
Lâminas de Quarenta clics em Curitiba (2. ed., 1990),
de Paulo Leminksi e Jack Pires.
Permaneçamos mais algumas linhas em A câmara clara, de Barthes. Esse livro, em cuja superfície mais visível Barthes disserta sobre a natureza essencial da fotografia, carrega como subtexto uma dolorosa meditação sobre o luto. A imagem que assombra todas as páginas (e que, por isso mesmo, nunca nos é mostrada) é uma fotografia da mãe do autor quando criança – Henriette Barthes falecera quase dois anos antes de o livro ser escrito. E penso por fim que, assim como a reflexão de Barthes sobre o haicai e a fotografia podem iluminar nossa leitura sobre os Quarenta clics de Leminski e Pires, há um outro livro, bem mais recente, que parece querer expandir, ou metaforizar, a relação que Barthes estabelece entre a fotografia e o luto. Trata-se de Catálogo de perdas (2017), de João Anzanello Carrascoza e Juliana Monteiro Carrascoza, inspirado no acervo do Museum of Broken Relationships, localizado em Zagreb, na Croácia, entidade que reúne relatos e objetos enviados por pessoas do mundo inteiro como representações das suas “relações partidas”.
Composto por textos fictícios escritos por João e por fotografias em branco e preto criadas por Juliana, Catálogo de perdas “reúne relatos de perda simbolizada sempre por um objeto e também representada em fotografia”, como afirmam os autores em uma exposição de motivos logo nas primeiras páginas. Como explica João em uma entrevista, mais do que ilustrar os textos, as fotografias de Juliana buscam ampliá-los, metaforizá-los.
Catálogo de perdas (2017), de João Anzanello Carrascoza e Juliana Monteiro Carrascoza.
Logo de chegada, um aspecto do livro que chama a atenção é o projeto gráfico: as páginas são encadernadas dobradas, de modo a mostrar na superfície imediata apenas os relatos e seus títulos, ocultando as fotografias e convidando o leitor ou a leitora a escolher por onde começar, pelo texto ou pela imagem. Os pares são organizados em ordem alfabética na forma de verbetes, como em um catálogo de objetos – ancinho, apito, balão, bengala –, títulos pontiagudos que funcionam quase como fotografias a puncionar (para permanecer no vocabulário barthesiano) as nossas lembranças mais recônditas. Aliás, não parece ser nada gratuita a escolha da imagem da capa, que também ilustra o verbete dedicado ao piercing: a fotografia semiapagada de duas crianças, um menino e uma menina, com dois piercings metálicos, que perfuram a superfície da imagem. Ao contrário dos outros dois trabalhos explorados neste texto – Paranoia e Quarenta clics em Curitiba –, Catálogo de perdas é um projeto coletivo desde o início: João e Juliana conceberam e realizaram o livro juntos.
Página de Catálogo de perdas (2017),
de João Anzanello Carrascoza e Juliana Monteiro Carrascoza.
Os exemplos acima, somados à extensa lista de obras apresentada a seguir, demonstram a imensa variedade de diálogos possíveis, tão diversa quanto podem ser as relações entre as individualidades que integram cada par ou grupo de autores. Tamanha variedade apenas comprova a potência que reside latente no contato entre autoras e autores, mas também, como busco apresentar aqui, na fricção entre essas duas “galáxias” narrativas – a fotografia e a literatura.
Paulo Fehlauer
Fotógrafo e escritor, doutorando em Teoria e História Literária na Unicamp
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REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BARTHES, Roland. O império dos signos. Trad. Leyla Perrone Moysés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
COHN, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro: Azougue, 2009.
VAZ, Toninho. Paulo Leminski: o bandido que sabia latim. São Paulo: Record, 2001.
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SUGESTÕES
A lista abaixo reúne publicações que, em uma primeira leitura, possuem elementos que as aproximam desta constelação denominada Diálogos. Inclui títulos catalogados na Base de Dados de Livros de Fotografia e outras obras não catalogadas, que compõem o acervo particular deste autor. Esse índice é apenas uma sugestão, nunca uma categorização.
... E foi uma vez uma pandemia ... – Imara Queiroz e Edmundo Gaudêncio
A barca : correspondências : cartas de Leo Divendal – Marcelo Greco (org.)
A visita – Maureen Bisilliat e Carlos Drummond de Andrade
Almaquática – Klaus Mitteldorf e Sidney Tenucci Jr.
Amazonas : palavras e imagens de um rio entre ruínas – Isabel Gouvêa, João Luiz Musa, Sônia da Silva Lorenz e Milton Hatoum
As cidades do Brasil : Salvador – Eder Chiodetto e Tom Zé
Asfalto – Fernanda Grigolin (coord.)
Bahia boa terra Bahia – Jorge Amado, Flávio Damm e Carybé
Bahia colorida – Jorge Amado, Carybé e Bruno Furrer
Brasil retratos poéticos – Araquém Alcântara, Bruno Alves, José Caldas e Raimundo Gadelha
Brasil retratos poéticos : 2 – Edson Sato [et al.] e Raimundo Gadelha
Brasília – João Almino e Ana Miranda
Cadafalso – Giovana Pasquini e Ana Persona
Câmara lúcida – Rosary Esteves e Gilka Bessa
Catálogo de perdas – Juliana Monteiro Carrascoza e João Anzanello Carrascoza
Cenas de fé – Miguel Chikaoka e Emanuel Matos
Chorinho doce – Maureen Bisilliat e Adélia Prado
Corpo outro – Vanessa C. Rodrigues e Ana Paula Málaga
Desordem – Fernanda Chemale e Gisela Rodriguez
Desvio na terra – Juca Gonçalves e Celso Martins de Almeida
Duas lentes – Miguel Setas e Cristiano Mascaro
Entre – Stefania Bril e Olney Krüse
Erosescorre : erotismo, arte e reflexão – Igor Marques
Estrangeiros em casa : uma caminhada pela selva urbana de São Paulo – Roberto Linsker e Reinaldo Moraes
Et Eu Tu – Arnaldo Antunes e Marcia Xavier
Falam as águas – Marcio Scavone e Paulo Bonfim
Fernando Hilda Lemos Hilst : fotos e fotomontagens inéditas de Fernando Lemos – Augusto Massi (org.)
Fotopoesia – Beth Pereira e Pedro Castel
Fotospoéticas – Zuleika de Souza e Antônio Paulo Barêa Coutinho
Grão : imagens palavras eternidade – Iara Tonidandel e Guto Monteiro
Inspiração : obra coletiva : literatura : fotografia – Rodrigo de Faria e Silva (coord.)
Linha vermelha – Gabriela Lissa Sakajiri e Ariadne
Lomopoéticas do urbano – Elaine Schmitt
Maré cavala – Raiça Bomfim e Lucas Moreira
Momentos de Minas – Ângelo Prazeres (edição)
Mulheres Centrais – Garapa e Sabrina Durán
Nossos olhos abertos como nunca antes – Tuane Eggers e Chana de Moura
O Brasil das placas : viagem por um país ao pé da letra – José Eduardo Camargo e André Luís Fontenelle
O espírito da luz – Teca Cunha Santos e Thiago de Mello
O mergulhador – Vinicius de Moraes e Pedro de Moraes
O paraíso são os outros – Valter Hugo Mãe e Nino Cais
O verso dos trabalhadores – Rodrigo Farhat e Alessandro Soares (org.)
Onde se formam as lembranças – Luis Jungmann Girafa
Os seios de Joana – Sérgio Jorge e Flavio de Almeida Prado
Outros – Aristides Alves e Antonio Risério
Pantanal – Alceo Magnanini, Carlos Drummond de Andrade e Luiz Claudio Marigo
Paranoia (1. ed.) – Roberto Piva e Wesley Duke Lee
Paranoia (2. ed.) – Roberto Piva e Wesley Duke Lee
Paranoia (3. ed.) – Roberto Piva e Wesley Duke Lee
People are strange : no escuro, arquivado – Giovana Pasquini e Ana Persona
Peso morto – João Castilho
Pirenópolis : pedras janelas quintais – Silvio Zamboni e João Bosco Bezerra Bonfim
Por trás daquela foto : contos e ensaios a partir de imagens – Lilia Moritz Schwarcz e Thyago Nogueira (orgs.)
Quarenta clics em Curitiba – Paulo Leminski e Jack Pires
Reflexos do tempo – Antonio Nepomuceno e Wilson Pereira
Retratos na parede – Altamir José de Barros e Robinson Damasceno dos Reis (orgs.)
Roteiro lírico e sentimental da cidade do Rio de Janeiro (...) – Márcia Ramalho e Vinícius de Moraes
Rua – Guilherme de Almeida e Eduardo Ayrosa
Sangue frio [v.1] – Fernanda Vallois e Juliana Bernardino
São Paulo : memórias do coração – Zeantonio e Waldemar Helena Jr.
São Paulo 1971-2011 : história recente, versões literárias, resíduos visuais – Coletivo Paralaxis e Luiz Ruffato [et al.]
Súbitos encantos para São Pedra e Espanto – Hamilton Faria e Lenna Beauty
Tempo morto – Leonardo Remor e Sissi Betina Venturin
Testemunho, desvario, passagem – Giovana Pasquini e Ana Persona
Toquiotas – Tom Boechat
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Fotografia e Literatura (parte 1): listas insuficientes para universos porosos
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dilatados
Fotografia e Literatura (parte 3): Diálogos: entre
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outro”
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