Fotografia e Literatura (parte 1): listas insuficientes para universos porosos

Galáxias em fricção 

  

Talvez o grande dilema de quem se põe a fazer listas (ou seja, de toda a humanidade) resida na necessidade que a tarefa nos impõe de estabelecer fronteiras entre elementos que muitas vezes desafiam a própria empreitada – seja ela comprar legumes e verduras na feira ou organizar o acervo de uma Biblioteca Nacional. Ainda assim, criamos listas diariamente, cientes da sua arbitrariedade e incompletude essenciais. O semiólogo italiano Umberto Eco, dono de uma biblioteca de mais de 30 mil volumes, costumava dizer que as listas estão na origem da cultura: elas representariam uma das formas que nós, humanos, encontramos para atribuir alguma ordem ao infinito. Seriam também uma forma de desafiar a morte: “gostamos de listas porque não queremos morrer”, diz Eco em entrevista à revista alemã Der Spiegel

O objetivo desta série de textos é apresentar uma lista, talvez uma lista de listas, na tentativa de ordenar minimamente um acervo repleto de porosidades; uma biblioteca borgeana composta por livros que, de diversas e particulares maneiras, colocam em fricção calorosa os campos da literatura e da fotografia. Vale avisar que esta organização será eminentemente especulativa, portanto arbitrária, inconclusa e aberta ao debate. Também é importante reforçar que nenhuma destas constelações se propõe fechada ou estanque, e que muitos dos livros inseridos em determinado conjunto poderiam facilmente pertencer também a outro, bastando, para isso, que ajustássemos o foco.

A difícil e paradoxal tarefa que se impõe a uma empreitada como esta é a de delimitar critérios que sejam não só possíveis, mas também identificáveis – não só para o seu autor, mas principalmente para os seus leitores. Uma lista, afinal, não deixa de ser uma forma de narrativa. Se a lista da feira conta a história de um cardápio e de uma cultura em particular, no caso das bibliotecas, a solução construída desde Alexandria, na Antiguidade, passa por uma tradição codificada no sistema de fichas catalográficas, ainda que se saiba que toda tradição será sempre insuficiente e, principalmente, móvel. Essa insuficiência natural fica ainda mais notável quando o universo a ser organizado são dois e quando resulta de uma aproximação entre campos tão expansivos e porosos em si mesmos como são a fotografia e a literatura. Isso porque, ao esfregarmos duas galáxias tão gigantes em si mesmas, colocando-as em contato, é necessário pensar, mais do que em fronteiras ou limites, em relações, e pode ser que resida aí, em uma sistematização mais ou menos ordenada dessas relações, um critério possível (e identificável, espero) para atribuirmos algum sentido a esse infinito elevado ao quadrado. Nos parágrafos a seguir, apresento uma introdução resumida de cada coleção de relações que integra a nossa lista; cada uma delas será discutida com um pouco mais de atenção nos textos seguintes. A esperança é que, a partir dos exemplos apresentados, os próprios contornos transpareçam de forma mais clara.  

   

Seis coleções

 

Neste exercício especulativo de sistematização e classificação de relações, podemos começar por aqueles livros nativos da fotografia em que o contato com a literatura se dá pela inspiração nas obras literárias ou na poética de determinadas escritoras e escritores. É uma forma bastante explorada, por exemplo, pela fotógrafa anglo-brasileira Maureen Bisilliat, que buscou interpretar, naquilo que chamou de “equivalências fotográficas”, os universos poéticos de uma parcela expressiva da literatura brasileira do século XX. Em sua extensa trajetória, Maureen leu em fotografias (utilizando estratégias diversas em cada projeto) os universos poéticos de Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Adélia Prado, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Jorge de Lima e Ariano Suassuna (esse último inédito).

    

Sertões: luz & trevas, de Maureen Bisilliat, lançado originalmente em 1982,
em reedição publicada pelo Instituto Moreira Salles em 2019.

   

Outro exemplo é Visões de um poema sujo (2016), em que o maranhense Márcio Vasconcelos propõe imagens para o poema seminal do conterrâneo Ferreira Gullar. Caberiam na lista também, entre outros, as releituras que faz Tiago Santana das obras de Luiz Gonzaga, em Céu de Luiz (2013); Graciliano Ramos, em O chão de Graciliano (2007); e Patativa do Assaré, em Patativa do Assaré: o sertão dentro de mim (2010); ou mesmo um livro de autoria coletiva como Cada dia meu pensamento é diferente (2013), organizado pela fotógrafa e educadora Tatiana Altberg e composto por imagens feitas com câmeras pinhole por integrantes de oficinas de criação, que tiveram como fio condutor o Rio de Janeiro de Machado de Assis. Nesses livros, pode-se dizer que a literatura precede a fotografia – ao menos cronologicamente. Chamarei essa primeira coleção de Releituras.

Podemos pensar também em obras que resultam de parcerias explícitas entre autores, um vindo da escrita e o outro, da imagem, obras nas quais o diálogo entre linguagens se dá por meio de um intercâmbio sincrônico, que torna mais difícil apontar alguma precedência. É o que acontece em Quarenta clics em Curitiba (1990 [1976]), cujas lâminas soltas trazem haicais de Paulo Leminski associados a fotografias de Jack Pires, e também em Paranoia (2000 [1963]), poema de Roberto Piva com imagens de Wesley Duke-Lee. Um exemplo recente é Catálogo de perdas (2017), com contos de João Anzanello Carrascoza e fotografias de Juliana Monteiro Carrascoza, um livro cuja própria forma ajuda a guiar a narrativa: ao deixar as fotografias inicialmente ocultas, parece propor que comecemos pelo texto, convidando-nos a descobrir em seguida a fotografia que acompanha cada um dos contos. Um nome possível para esse conjunto seria Diálogos.

   

Catálogo de perdas (2017), de João Anzanello Carrascoza
e Juliana Monteiro Carrascoza.

  

Adentrando um pouco o terreno da literatura, uma terceira constelação pode incluir obras que, catalogadas como romances, contos ou poemas, inserem fotografias no meio das suas tramas, fazendo com que as imagens passem a operar como elementos integrantes das narrativas (como versos ou parágrafos, por exemplo). É o caso de romances como Puro gesto (2020) e História natural da ditadura (2006), de Teixeira Coelho. Nesse último, o autor enreda temas como o suicídio do filósofo judeu alemão Walter Benjamin, o exílio em São Paulo do artista plástico argentino León Ferrari, as ditaduras latino-americanas e a teoria do “estado de exceção permanente”, de Giorgio Agamben (sobre esse romance, publiquei um artigo em meu blog pessoal). Também é o caso de Opisanie Swiata (2013), romance de Verônica Stigger entremeado por imagens, e de Noite dentro da noite (2017), de Joca Reiners Terron, no qual cada um dos 13 capítulos é introduzido por uma fotografia rasurada (recorte a partir do qual desenvolvi uma dissertação de mestrado). No campo da poesia, é o caso de livros como Junco (2011), de Nuno Ramos, e Parque das ruínas (2019), de Marília Garcia, que entremeiam fotografias aos poemas, e cujos versos por vezes fazem menção às imagens. Pensando de forma análoga, no campo dos fotolivros é comum o recurso à incorporação de trechos literários e poemas como forma de produzir ruídos que interfiram na leitura que fazemos das imagens, como no caso de Nakta (1996), de Miguel Rio Branco, que dialoga com o poema Noite fechada, do escritor francês Louis Calaferte. Chamarei esse grupo de Impregnações.

   

Página de Opisanie Swiata (2013), de Verônica Stigger.

   

Há também aqueles casos em que fotógrafo e escritor, fotógrafa e escritora, convivem na mesma pessoa. É o caso de Os corpos e os dias (2008), da artista visual e poeta carioca Laura Erber; de Vermelho (2015), da artista plástica Paloma Mecozzi; de Seu retrato sem você (2018), da poeta e fotógrafa Tatiana Eskenazi; e de A pintura em pânico: fotomontagens (1943), do poeta alagoano Jorge de Lima, composto por 41 fotomontagens que vêm acompanhadas cada uma por um verso. Na falta de palavra melhor, serão chamados de Convívios.

    

Catálogo da exposição A pintura em pânico: fotomontagens, apresentada pela Caixa Cultural em 2010,
no qual são reproduzidas fotomontagens pertencentes ao livro de Jorge de Lima, publicado originalmente em 1943.

  

Ou ainda aquelas obras em que um dos dois universos – o literário ou o fotográfico – assume dentro do outro uma presença espectral. Isso acontece, por exemplo, quando a fotografia, ainda que não apareça de maneira explícita, como discurso visual, entra na literatura como tema. É o caso de romances como O fotógrafo (2004), de Cristóvão Tezza, e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2005), de Marçal Aquino, ambos com personagens fotógrafos; de alguns trabalhos da escritora cearense Tércia Montenegro, como o volume O tempo em estado sólido (2012), cujos contos falam de personagens fotógrafos, caixas de fotografias de família, entre outros; ou mesmo dos Ensaios fotográficos (2000) de Manoel de Barros, na poesia. Caso invertamos os lados da equação, poderão entrar aqui também certos fotolivros cujas sintaxes narrativas (abordagem, edição, sequência) aludem às formas literárias. Nessa seara, a “aderência” se dá de forma mais sutil: é o caso, por exemplo, de Intergalático (2014), de Guilherme Gerais, e Folie à deux (2016), de Felipe Abreu, que se apropriam do caráter ficcional da fotografia como estratégia narrativa que remete à literatura. Seja qual for o lado da equação, chamarei a quinta coleção de Alusões.

   

Folie à deux (2016), de Felipe Abreu.

  

Como antecipei há alguns parágrafos, as coleções e denominações propostas aqui são mais especulativas, propositivas, do que definitivas ou classificatórias; sem qualquer pretensão tipológica, buscam mais a abertura do que o encerramento, a sugestão mais do que a determinação. Sendo assim, é evidente que serão incapazes de abordar todos os possíveis contatos entre fotografia e literatura, mesmo porque, enquanto constelações, elas podem facilmente ser redesenhadas das mais diferentes e criativas maneiras. Além disso, cada obra sobre a qual pusermos nossos olhos mais detidamente fará o possível e o impossível para escapar a qualquer tentativa que façamos de agarrá-la, de contê-la no interior de uma classe. Fotografia e literatura são, cada uma a seu modo, universos construídos por imagens, e as imagens são como os fantasmas, difíceis de agarrar.

Com isso em mente, daria para seguir ao infinito e além nesse jogo de desenhar constelações sem nunca chegar perto de concluí-lo, pois haverá sempre aqueles casos que questionam a própria empreitada. A solução precária, mas possível, será reuni-los por exclusão, entendendo que é precisamente por esfumaçarem as fronteiras que trabalhos como esses mantêm as listas vivas – e as galáxias em expansão. Serão chamados, portanto, de Desvios. E uma coleção que busque reunir tais obras desviantes certamente incluirá um livro como O mez da grippe (2020 [1981]), do escritor curitibano Valêncio Xavier, obra peculiar na qual uma narrativa ficcional é contada a partir da montagem de textos, imagens e recortes jornalísticos de época. A lista também poderia incluir Histórias do não ver (2001), de Cao Guimarães, livro que resulta de uma experiência performática na qual o artista mineiro, munido de uma câmera analógica, era vendado e levado por amigos a locais desconhecidos. Ou O livro dos monólogos (recuperação para ouvir objetos) (2018), do escritor e curador pernambucano Diógenes Moura, cujas narrativas de cunho autobiográfico fazem referência a fotografias de uma série de autoras e autores, imagens com as quais Moura convive em sua própria casa e que nos são mostradas em coexistência com os demais objetos que participam da sua intimidade cotidiana. 

   

Páginas de O mez da grippe, de Valêncio Xavier, lançado originalmente em 1981, na edição
publicada pela Companhia das Letras em 1998, com o título
O mez da grippe e outros livros.

  

Ainda que possamos, nas obras acima, discernir textos de imagens na superfície do papel, os limiares discursivos entre fotografia e literatura ficam mais difíceis de se traçar. São obras que apontam justamente para a arbitrariedade de todo o esforço que dispensamos na tarefa de classificar, de listar, de atribuir sentido ao infinito – de desafiar a morte. Consciente dessa arbitrariedade, e expostos os critérios básicos de cada uma das coleções, nos próximos seis capítulos proponho-me a explorá-las com um pouco mais de detalhe, apresentando exemplos e apontando para as fronteiras igualmente porosas de cada constelação.

   

Paulo Fehlauer
Fotógrafo e escritor, doutorando em Teoria e História Literária na Unicamp

   

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OUTROS CAPÍTULOS DESTA SÉRIE

Fotografia e Literatura (parte 1): listas insuficientes para universos porosos
Fotografia e Literatura (parte 2): Releituras: tempos dilatados
Fotografia e Literatura (parte 3): Diálogos: entre delírios, haicais e perfurações
Fotografia e Literatura (parte 4): Impregnações: espelhos ambíguos
Fotografia e Literatura (parte 5): Convívios: “eu é um outro”
Fotografia e Literatura (parte 6): Alusões: duas ou três faces
Fotografia e Literatura (parte 7): Desvios: constelações em movimento

  

   

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