O campo de estudos dos fotolivros possui um percurso teórico que coloca as linguagens em diálogo para buscar pistas sobre o modo das narrativas visuais produzirem sentido. Encontramos na literatura o campo mais antigo e sedimentado, no qual a definição mais abstrata de narrativa é a de uma mudança de estado, que pode ser tanto estado de coisas do mundo quanto estados internos ao sujeito.
O tipo de alteração de mais fácil apreensão é aquela que se dá no tempo por uma lógica de causa e consequência. No entanto, o mundo da literatura, do cinema, dos quadrinhos e dos fotolivros nos mostram que as coisas podem ser bem mais complexas do que isso. Essas mudanças comportam agentes e modos de se desenrolar no tempo, e a narratologia foi a primeira a compreender os papéis do enunciador, narrador, personagens, e o desenvolvimento de ações em arcos como o do conflito, clímax e resolução.
Enquanto a linguagem verbal carrega suas especificidades – como o modo de demarcação do tempo e do sujeito –, os estudos sobre o cinema que sucedem àqueles da literatura permitiram investigar os modos peculiares à imagem e à sequência visual para a produção da significação. Neste campo, sabemos que os estudos de Sergei Eisenstein (2002) sobre a montagem nos dão uma boa perspectiva para investigarmos as conexões feitas entre fotografias colocadas em sequência em um livro.
As formas de montagem cinematográfica identificadas pelo cineasta russo (montagem métrica, rítmica, tonal, atonal e intelectual) são uma interessante combinação de parâmetros objetivos (como o comprimento da cena e o intervalo temporal de formas sonoras) com as considerações sobre o impacto emocional daquilo que aparece na tela. As categorias de montagem estabelecidas em 1929 podem e são hoje testadas em fotolivros, conforme encontramos, por exemplo, na tese Fotolivro como montagem: fenômenos de justaposição eisensteiniana, defendida por Ana Paula Vitório da Costa em 2020, na PUC-RJ.
Eisenstein entendia que a narrativa imagética comporta uma materialidade visual e um conteúdo que se desenrolam ao longo do tempo. No cinema, colocar as imagens em sequência não é suficiente, é preciso estabelecer a duração com a qual elas aparecem na tela. Há, então, uma relação com os efeitos alcançados. Planos longos, por exemplo, costumam ser mais calmantes que o frenético alternar de imagens que vemos desde a era do videoclipe.
Uma das mais interessantes observações entre as diferenças das sequências cinematográficas e daquelas dos fotolivros é que no cinema lidamos com um tempo estabelecido já de saída sobre a duração da imagem em movimento. Já a obra editorial carrega a maleabilidade do tempo que será empreendido pelo leitor no virar de folhas e observações de páginas. O artista perde o controle sobre o tempo de fruição e poderá tentar restabelecer o impacto e importância de um fragmento no livro por meio de outra variável das imagens: o espaço ocupado na página.
Sendo assim, uma importante métrica do universo dos fotolivros é a espacial. O tamanho da imagem, sua diagramação na página e mesmo a repetição da fotografia e de seus elementos gráficos criam sequências que podem nos indicar a força do fragmento fotográfico na narrativa.
Em nosso texto anterior, observamos o papel das rimas visuais em Welcome home, de Gui Mohallem, como um elemento que funciona como um mediador visual, construindo uma relação de coerência entre as fotos. Podemos, agora, pensar em outros aspectos das imagens que apresentam alto grau de coerência ao longo de uma sequência no fotolivro. Se levarmos ao extremo a existência num fotolivro de imagens que tenham a mínima variação de elementos, poderemos começar a entender que essa máxima redundância incita uma transição mais rápida entre as imagens por parte do leitor, pois o baixo grau de novidade pode fazê-lo passar mais rapidamente as páginas em busca de uma ruptura. É quando podemos perceber com mais nitidez que o grau de complexidade da relação entre as imagens pode se relacionar com o tempo de fruição das fotografias.
Nesse sentido, há o exemplo mais cinematográfico dos fotolivros, no qual imagens com a mínima variação em sua visualidade são combinadas com a máxima velocidade de fruição: os flipbooks. Talvez esse seja o tipo de publicação que mais se aproxima da experiência cinemática, pois essas obras prescrevem com mais força o tempo para ver as imagens.
Dentro do universo de publicações que incitam uma aceleração do olhar, um fotolivro de Jonathas de Andrade chama a atenção. 4000 disparos é uma publicação de 2011 que já nasce derivada de frames de vídeos feitos pelo artista sobre rostos masculinos filmados enquanto caminha pelas ruas de Buenos Aires.
4000 disparos (2011), de Jonathas de Andrade.
O anonimato dá a tônica para que o olhar não seja convidado a fixar-se em nenhum dos semblantes. É um convite ao leitor para experimentar a máxima velocidade de fruição que irá restaurar a lógica do movimento com o qual essas imagens cinemáticas foram captadas.
A rapidez caracteriza 4000 disparos, assim como os flipbooks que são costumeiramente encadernados no formato codex. Se a aceleração é aqui propiciada pelo modo com as páginas se sucedem, podemos encontrar outros modos de manipulação do papel em fotolivros que vão impor desafios mecânicos ao desdobramento da narrativa. Existem diversas experimentações interessantes no ritmo de leitura no universo dos fotolivros que abandonam o codex para pensar outros percursos para que uma narrativa de fotos aconteça: é o caso do Fotodobras.
A coletânea de pequenos livros/cartazes/dobraduras foi produzida em 2015 e 2016 pela editora porto-alegrense Beira Movida Editorial e exibe publicações que brincam com a direção de leitura da sequência de fotografias. Em cada um dos dois volumes editados, as cinco folhas dobradas são abrigadas numa caixa. Cada um desses cinco livretos resultam em oito páginas com conjuntos de imagens que ora figuram de modo concomitante, ora se afastam e desdobram quando manipulamos a folha única que compõe cada publicação.
Fotodobras (2015), organizado pela Beira Movida Editorial.
Fotodobras: deslocamentos. Vol.2 (2016), organizado pela Beira Movida Editorial.
É o caso também de Barathrum e das obras que requerem tanto engenhosidade do fotógrafo durante a edição de imagens quanto vontade de aventurar-se por parte do leitor para que as múltiplas possibilidades do formato editorial sejam atualizadas. Cabe ao artista projetar as fotografias que se encontrarão próximas, em relação de continuidade do ritmo de leitura, e aquelas que se deixarão ver opostas, em espelhamentos que separam determinados conjuntos.
Geralmente encontramos esses formatos mais experimentais no universo dos zines, pois essas são publicações que costumam reforçar seu caráter autoral e inovador. A Base de Dados de Livros de Fotografia disponibiliza na ferramenta de busca avançada a possibilidade de procurarmos por tipos de publicações específicas, e dentre elas os zines. Um passeio por essas obras nos leva a exemplos interessantes como Sem pressa, de 2017.
Sem pressa (2017), de Ana Lira e Nathalia Queiroz.
A publicação foi realizada no âmbito de uma oficina para produção de fotolivros em Pernambuco. O tema da lentidão do tempo se desdobra em direções incertas nas quais o leitor passa por conjuntos lineares de fotos encadeadas até que uma direção oposta, a vertical, impõe-se. Por fim, há a chegada à folha em formato A3 aberta, ponto de culminância do desdobramento percebido como síntese espacial final. Para fechar o livro, é até difícil restaurar as dobras antes feitas, pois sua ordem pode ser facilmente esquecida. Sem pressa é uma obra que coloca lado a lado as fotografias e o ritmo de leitura do desdobra-se de páginas. Com isso, ela nos mostra que o tempo é um elemento fundamental da fruição de imagens no formato editorial.
Na contramão das publicações que favorecem a velocidade de leitura, encontramos outras que estimulam ao máximo o tempo dilatado de contato com as imagens por meio de estratégias editoriais mais radicais como o corte de dobras das imagens. É o que encontramos em Nimbus, publicação de 2016 de Elaine Pessoa que no projeto editorial de Fábio Messias prevê que o leitor corte as dobras francesas do livro que escondem novas imagens.
Sabemos, no entanto, que o tempo de folhear as imagens não é o único aspecto da temporalidade dos fotolivros. Associações mais ou menos complexas entre imagens convidam o leitor a passar mais ou menos velozmente entre as imagens. Isso porque precisamos de um tempo para o entendimento sobre as relações entre imagens. Numa narrativa que segue um tempo linear e uma lógica causal, o leitor pode seguir mais rapidamente pelas páginas rumo a um desfecho.
Assim como no cinema, a narrativa causal que segue a lógica temporal linear nos fotolivros é a menos disruptiva. Mas, tal como encontramos também nas obras cinematográficas de vanguarda que experimentaram uma poética anti-narrativa, podemos encontrar no universo dos fotolivros outros modos de encadeamento das imagens, mais próximos da lógica que Deleuze (2013) identifica como imaginária. Referimo-nos aqui às rupturas e descontinuidades, como um filme feito de imagens-sonho que conservam a capacidade de se metamorfosearem em partes de diferentes histórias a que poderiam pertencer.
O exemplo mais direto nas publicações de fotografia da falta radical de linearidade são as obras que apresentam fotografias em páginas soltas, como o zine Esplendor (de Tuane Eggers, 2018) e o livro-objeto O cinematógrafo (de Vicente de Mello, 2014). Um dos fotolivros contemporâneos que utiliza essa estratégia é o Caixa de sapato, do coletivo Cia de Foto (2015).
Caixa de Sapato (2015), da Cia de Foto.
A obra compila quatro cadernos que não são costurados e que permitem que as fotos e histórias de cada um dos integrantes do coletivo sejam misturadas pelo leitor. Outras publicações trazem de forma mais sutil a possibilidade de recombinação, como na encadernação parafusada de Sobremarinhos, de Gilvan Barreto. A alternativa das páginas da publicação pousarem em outros suportes e virarem quadros na parede, assim como serem separadas para serem presenteadas são ações implícitas na liberdade do leitor em desmembrar as páginas.
A possibilidade de recombinação total de fragmentos faz com que o leitor divida com o autor de forma mais direta os caminhos narrativos possíveis. É aí que novas sequências podem se formar, e elas são a base da narrativa. A sequência é, segundo Barthes (2008) um núcleo unido por uma relação de solidariedade. “A sequência abre-se assim que um de seus termos não tenha antecedente solidário e se fecha logo que um de seus termos não tenha mais consequente" (BARTHES, 2008, p.40). O que parece simples de ser descrito pode encontrar fronteiras bem fluidas a depender da relação mais ou menos pessoal que o leitor projete sobre as imagens.
O jogo de reconhecimento das unidades mínimas de ligação de uma sequência de imagens é um grande desafio para o leitor de fotolivros. Devemos considerar que nem sempre a sequência se dá de forma linear. Barthes (2008, p. 43) nos alerta: "os termos de muitas sequências podem muito bem imbricar-se uns nos outros: uma sequência não acabou e já, intercalando-se, o termo inicial de uma nova sequência pode surgir".
E desde o final dos anos 1980 vemos cada vez mais narrativas não lineares, conforme nos conta Katia Canton (2009) sobre as formas particulares e contemporâneas de contar histórias. Elas são compostas a partir de fragmentos, sobreposições, repetições, deslocamentos, simultaneidade de tempo e espaço. Além disso, essas narrativas enviesadas passam a incorporar os efeitos de sentido que vem da abstração (a valorização dos aspectos formais da obra de arte), a não linearidade das estruturas de pensamento e os mecanismos que compõem os processos de criação de uma obra.
Os diferentes modos de se produzir narrativas ganharão uma tentativa de organização por estudiosos da área, como Gerry Badger. O pesquisador inglês chega a propor três tipos principais de narrativas que vão das mais simples e comuns até as mais complexas: a jornada, os diários e os sonhos e a simbolista/metafórica. A jornada apresenta formato linear, com início (por vezes ambientação) e fim. A razão de ser tão popular entre fotógrafos seria porque “[...] replica a maneira como a maioria dos fotógrafos realmente tira fotos, passando de um assunto para o outro, e também [...] o modo como 'nos movemos' pelo fotolivro em si” (BADGER, 2013, p. 25, tradução nossa).
Esse tipo de narrativa pode utilizar continuidade e/ou contraste de elementos do plano da expressão ou de elementos do plano de conteúdo (como figuras e temas) ao longo das imagens para fazer com que a narrativa avance. Ela também pode ser construída com base em um “personagem” e este não precisar ser necessariamente uma pessoa, mas pode ser um objeto, uma ação, etc.
O segundo tipo de narrativa seria o que Badger denomina “os diários e sonhos”, na qual o intuito é criar uma ambientação e transmitir sensações de modo intimista. O terceiro e último tipo de narrativa seria a simbolista ou metafórica, na qual o encadeamento de duas ou mais imagens é feito para expressar algo, um conteúdo, uma opinião, de maneira que uma imagem apenas não seria capaz de fazer. Segundo Badger, estes seriam os três tipos de narrativas comumente usadas em fotolivros e o emprego de mais de uma narrativa na mesma obra também é possível de se observar.
O campo dos fotolivros tem a vantagem de não ter ainda amadurecido por completo uma regra padrão sobre o modo como uma narrativa visual pode ser feita. Tal como o cinema, pode-se experimentar com outras formas e um nicho mais conceitual e experimental avança nessa área.
Para além da complexidade e modos de articulação das narrativas, como os definidos por Badger, um elemento bastante decisivo para um fotolivro ganhar reconhecimento no cenário atual, em que tantas publicações disputam serem inovadoras em espaços como feiras e sites especializados, é a atenção que ganhará da crítica. Esse é um mecanismo de reconhecimento e atenção que não é exclusivo dos fotolivros, é claro, mas parte de uma economia simbólica da arte e que tem seus personagens e mecanismos de valorização.
Novos modos de articular o tempo e o entendimento vão desafiar a compreensão por meio da linguagem e do modo como costumamos expressar aquilo que vemos narrado. E são os críticos aqueles que vão tentar exprimir os efeitos de sentido que as publicações produzem, ajudando a modular o valor das obras em meio a tantos fotolivros.
Mas esse tema ultrapassa as relações que aqui buscamos fazer entre as narrativas cinematográficas e editoriais. Será tema de um outro artigo, no qual poderemos discutir o entorno crítico dos fotolivros, seus personagens e regras pertencentes ao campo artístico. Terminamos, então, num estilo daqueles filmes que terão uma continuação, como as séries de tv que prenunciam novas temporadas. Sabemos que a fronteira entre os modos de construir textos e narrativas podem ser transponíveis de uma linguagem a outra. E que se feche a cortina.
Daniela Bracchi
Pesquisadora do Núcleo de Design e Comunicação da UFPE - Centro Acadêmico do Agreste
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REFERÊNCIAS
BADGER, Gerry. It’s All Fiction: Narrative and the Photobook. In: Knape, G (ed). Imprint: Visual Narratives and Beyond. Estocolmo: Art and Theory Publishing, 2013.
BARTHES, Roland. Introdução à Análise Estrutural da Narrativa. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
CANTON, Katia. Narrativas Enviesadas. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2009.
DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo (Cinema 2). São Paulo: Brasiliense, 2013.
EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. São Paulo: Zahar, 2002.