Graus de coerência entre imagens em uma narrativa visual

O fotolivro, essa obra tão característica do século XX, tem funções variadas desde seus inícios. Ele foi registro enciclopédico dos fatos, recriação de exercícios formais da modernidade e anotações sobre novos costumes, para citarmos alguns de seus principais papéis dentro de seu campo (FERNÁNDEZ, 2011). Nessas formas do existir enquanto publicação que até agora mencionamos, a ordem e encadeamento das imagens tiveram um baixo nível de importância, e essas obras se caracterizam mais como uma compilação de imagens em busca de uma documentação do que criação de uma narrativa que se desenrole ao longo das fotografias.

As possibilidades dos tipos de publicações fotográficas são inúmeras, tal como nos alertam Martin Parr e Gerry Badger: "As fotografias podem funcionar como documentos históricos, propaganda política, pornografia, repositório para memórias pessoais, obras de arte, fatos, ficções, metáfora, poesia." (PARR; BADGER, 2004, p. 6, tradução nossa). Podemos, assim, perceber a diversidade de objetivos e ambições do meio, mas é ainda mais interessante observar que os fotolivros travam um diálogo com formas de construção de narrativas visuais que vão desde formas artísticas museais, passando pelos quadrinhos até os filmes. Isso porque esse modo de publicação se situa entre as formas artísticas restritas à seara dos connoisseurs e os formatos que serviram à exibição massiva de imagens. 

Há esse diálogo entre as séries de imagens que propõem uma relação narrativa entre elas. A continuidade entre as formas visuais foi apontada em nosso artigo anterior, e o que nos interessa explorar melhor neste texto são as possibilidades poéticas e metafóricas que essas publicações exibem ao encadearem imagens enquanto um modo de produzir um saber cognitivo e sensível do mundo. Nos fotolivros, uma imagem ressoa com a outra estando tanto lado a lado em páginas duplas quanto colocadas em sucessão de páginas.

Na história dos fotolivros, sabemos que a importância da ordem das imagens nas publicações começa a ser notada em American Photographs, de Walker Evans, uma obra de 1938 que acompanhou a exposição do fotógrafo no Museu de Arte Moderna de Nova York. Ao lado de The Americans (1958), de Robert Frank, esses dois fotolivros constituíram o cânone do seu campo de estudos. Mais do que um catálogo que compilava as imagens exibidas no museu, American Photographs tornou-se famoso pelas sequências que exibe, especialmente seu início e fim. Enquanto isso, The Americans é repleto de micro-sequências narrativas que chamam a atenção por nos mostrar sob um novo ângulo um país racista e distante do edulcorado american way of life.

Este primeiro e célebre exemplo do uso narrativo do encadeamento de imagens acontece bastante cedo no tempo ao compararmos com a mais tardia produção brasileira. Isso porque é só na década de 1970 e 1980 que aparecem os primeiros exemplos de fotolivros famosos por utilizarem o desenrolar das imagens como elemento narrativo central. Nesse contexto, inicialmente destaca-se o primeiro fotolivro de Miguel Rio Branco, publicado em 1985 com o auxílio do Fondo de Cultura Económica (México) e intitulado Dulce sudor amargo.

 

Dulce sudor amargo (1985), de Miguel Rio Branco.

 

Ao longo das páginas da obra, encontramos duplas de imagens como essa abaixo. É um díptico que nos adverte bem sobre o poder da colocação lado-a-lado de fotografias no contexto do fotolivro.


Páginas 25 e 26 do livro Dulce Sudor Amargo (1985), de Miguel Rio Branco.


As duas imagens acima nos permitem avançarmos nas repercussões do encadeamento narrativo de um fotolivro porque neste díptico se vê com clareza que a semelhança visual entre uma fotografia e outra é um elemento importante no estabelecimento de uma relação entre as fotografias. Isso porque tanto o tamanho que os dois corpos ocupam na página, assim como as formas e o arranjo das cores dispostas na camuflagem na vestimenta feminina e na plumagem da ave, criam um conjunto muito semelhante em termos visuais.

Como acontece nesta e em outras obras que participam da fundação da história dos fotolivros, as associações visuais entre as imagens são muitas vezes feitas de maneira inovadora, distantes da lógica causal e propícias para a colocação em ato da capacidade imaginativa do leitor. A sequência de imagens nos convida a observarmos novas formas de associação entre figuras do mundo de uma maneira que foi bastante estudada pela filosofia da linguagem em seus estudos sobre a metáfora. 

No âmbito linguístico, podemos definir essa figura de linguagem como “um repentino salto da imaginação criadora que associa duas ideias ou universos do discurso nunca antes conectados, colhendo-os numa nova síntese, que exprime revelação cognitiva e catarse emocional” (LOPES, 1987, p. 100). Mas o conhecimento sobre a retórica e suas figuras de linguagem na forma verbal não são facilmente transponíveis para a sintaxe visual. Isso fica claro nos estudos dos pesquisadores franceses e belgas que se reuniram sob a alcunha do nome Groupe μ. Eles nos alertam dos perigos de relações que sejam rapidamente feitas entre as linguagens verbais e visuais: “Fenômenos descritos frequentemente como 'metáforas visuais' provêm de mecanismos tão diferentes que não nos interessa em absoluto reuni-los com um termo que os unifica de maneira específica” (GROUPE μ, 1994, p. 260).

Se os mecanismos de produção de metáforas visuais são muito variados, podemos nos deter na ideia de que uma sequência visual frequentemente exibe duas ou mais figuras e, consequentemente, duas ou mais ideias que podem ser associadas de maneira nova. O sentido que surge de maneira inusitada e apoiado nas características visuais da imagem nos leva a pensar na formação de uma imagem poética, tal como colocado pelo filósofo Gaston Bachelard (2001).

A imagem poética é muitas vezes trazida à tona nas narrativas visuais por meio da sugestão de estarmos num sonho ou devaneio. Esse estado nos deixa prontos a suspender a lógica cotidiana para enxergamos novas associações, imaginarmos lugares e percursos que se delineiam no decorrer do folhear de páginas. 

No campo da produção visual contemporânea brasileira encontramos um grande exemplo da produção de uma narrativa poética em Welcome home (2012), de Gui Mohallem. Nessa obra, o autor mineiro nos convida a um percurso por um santuário queer no interior dos Estados Unidos. O tema do encontro com identidades tão variadas dá a tônica do livro. Movemo-nos pelo local e nos deparamos com seus personagens a partir de um uso clássico da estrutura da jornada. 

 

Welcome home (2012), de Gui Mohallem.

 

Os personagens frequentemente estão centralizados no espaço da imagem e esse é um primeiro recurso que estabelece a semelhança visual entre as fotografias, capaz de nos indicar que estamos frente a uma continuidade. O modo de disposição mais abstrato de uma figura englobada por um entorno é o elemento que se repete como uma rima visual, um indicador da existência de uma relação de sentido entre os termos. E isso se dá da mesma maneira como as rimas em uma poesia fazem o leitor buscar uma relação de conteúdo com aquilo que se aproxima no nível fonético. Há uma mediação plástica que nos leva a aproximações de imagens como pertencentes a um mesmo clima, uma mesma atmosfera do lugar pronta a falar de um modo de vida.

Esse é um tipo de discurso visual que coloca uma camada de sentido a mais em relação àqueles livros que compilam fotos sem uma sequência específica. Quando o leitor percebe a semelhança visual entre as imagens, ele alcança a partir daí novos rumos que não existiriam se apenas uma imagem fosse mostrada sem conexão com a próxima, o que termina por estabelecer uma maior cumplicidade do leitor com o autor dessa sentença visual que nos convida a ser compreendida.

Assim se desenrola a jornada de Welcome home, em páginas com grandes molduras. Até que sete imagens esparsas ao longo do livro ocupam a página inteira e impõe outro ritmo visual ao mudar a distância com a qual nos encontramos frente às pessoas e ao lugar. São espécies de focalizações, convites para estarmos imersos e mais próximos dessas imagens. É assim que podemos sentir a acolhida familiar a que alude o título do livro, para em seguida o distanciamento se reestabelecer nas páginas seguintes.

Não é à toa que até aqui buscamos descrever as estratégias visuais em termos de aproximação e distanciamento, semelhança e dessemelhança de elementos plásticos, e associações mais ou menos próximas do conteúdo criadas a partir dos elementos visuais. Isso se deu porque concordamos com um ponto de vista semiótico de que existe, em essência, uma maior ou menor aproximação visual e de conteúdo que constrói uma espécie de espectro. Essa dosagem vai do maior tipo possível de coerência entre imagens até o maior distanciamento capaz de formar uma incoerência. 

No mais alto grau possível de coerência que poderíamos conceber logicamente está a inerência na qual uma imagem apresentaria a completa igualdade em relação à sua vizinha. Seria, portanto, a mesma imagem. É difícil encontrar isso em fotolivros, mas podemos lembrar das duplas de imagens quase idênticas em Amazônia (1978), de Claudia Andujar e George Love. O próprio Gui Mohallem explorou essa estratégia na sua série de imagens Coney Island (2008-2010). 

Imagem da série Coney Island (2008-2010), de Gui Mohallem.

 

A partir dessa posição lógica radical da sequência de imagens inerentes, ou seja, serem as mesmas, podemos caminhar num continuum no qual a coerência se estabelece por aproximações plásticas que conferem a possibilidade de imaginarmos relações íntimas de conteúdo entre as imagens. E continuando num maior distanciamento, temos a construção de aderência entre as fotografias, na qual percebemos semelhanças que, mesmo sem serem “perfeitas”, prevalecem amplamente sobre as diferenças. 

É muito interessante para a análise dos fotolivros pensar que a coerência se dá em graus e observarmos como as aproximações e distâncias plásticas, icônicas e rítmicas se constróem entre as imagens. Desse modo, vemos a construção do sentido numa tensão, estudada na semiótica por Claude Zilberberg (2005) nos termos de inerência, coerência, aderência e incoerência.

Existiria, portanto, uma justa medida da associação entre contrários. Imagens muito próximas em termos de forma e conteúdo poderiam criar um sentido de tédio se repetidas em demasia ao longo dos fotolivros, exacerbando o conforto do conhecido. Já a distância excessiva em termos plásticos e semânticos pode inviabilizar que percebamos uma relação de sentido entre elas, agudizando o impacto do insólito até a falta de relações a serem feitas. 

A semiótica aqui se aproximou de uma noção que já era estudada nos quadrinhos, revelando que os meios de comunicação de massa podem ser um grande campo de diálogo com os fotolivros. Scott McCloud comenta em seu livro Desvendando os quadrinhos (2005) esse tipo de relação, sugerindo que as transições entre imagens numa sequência podem ir de uma diferença surgida em pequenos movimentos do personagem, passando pelo encadeamento de ações, de aspectos e temas de uma cena até uma colocação lado a lado de imagens que não apresentam semelhanças plásticas ou semânticas a serem criadas logicamente, caracterizando o que McCloud denomina de uma sequência non-sequitur.

Voltando agora ao fotolivro objeto de nossa investigação neste artigo, podemos afirmar a coerência plástica das imagens de Welcome home e a criação de um percurso onírico que o livro propõe. Iniciamos falamos da centralidade das figuras no plano fotográfico, mas a cor é também aqui um elemento importante para criarmos uma experiência indubitável de estarmos suspensos em um tempo e espaço único.

Essa coerência no âmbito das cores e enquadramento central das figuras é dinamizada na sequência de imagens por páginas em branco que sugerem renovarmos a visão para os novos capítulos dessa jornada. Outro fator dinamizador são as sete imagens em página inteira. Essas fotos "sangradas" sugerem mais uma pausa visual para podermos nos demorar no percurso de leitura que, de outro modo, poderia ser mais acelerado por conta da similaridade entre cores e enquadramento das imagens menores.

Ao final do livro, mais uma vez as reiterações de figuras, cores e enquadramento sugerem uma narrativa cíclica. Tal como nos aproximamos do acampamento nas primeiras páginas, agora vamos paulatinamente nos distanciando, vendo as figuras humanas sumirem ao longe.

Utilizamos Welcome home como um guia para apontar um conceito que é essencial ao nosso ver para a compreensão da construção da significação na narrativa imagética. Aproximações e distanciamentos entre características plásticas das imagens servem como pontos de partida para investigar o grau de aproximação de sentido que pode existir entre as fotografias de uma obra. Isso na linguística tem sua investigação contemplada nos estudos sobre metáfora. Aqui, exploramos a noção semiótica da existência de um espectro que vai da inerência, coerência, aderência até a incoerência e seu grande potencial analítico para nos ajudar a compreender a maior ou menor intimidade que o livro constrói entre suas imagens. 

A partir disso, vislumbramos algumas consequências da fruição dessas narrativas, como o maior ou menor envolvimento do leitor na leitura da sequência de imagens, a convocação de sua capacidade imaginante e o grau de novidade das imagens poéticas que se delineiam no passar de páginas relacionado cores, formas, figuras e sentidos do mundo.

 

 

Daniela Bracchi
Pesquisadora do Núcleo de Design e Comunicação da UFPE - Centro Acadêmico do Agreste  

 

 

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REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FERNÁNDEZ, Horacio. Fotolivros latino-americanos. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

GROUPE µ. Tratado del signo visual. Madrid: Ediciones Cátedra, 1994.

McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo, Makron books, 2005.

LOPES, Edward. Metáfora: da retórica à semiótica. 2.ed. São Paulo: Atual, 1987.

PARR, Martin, BADGER, Gerry. The Photobook. A History, Vol. I. Londres: Phaidon, 2004.

ZILBERBERG, Claude. Synesthésie et profondeur. IN: BEYAERT-GESLIN, Anne, NOVELLO-PAGLIANTI, Nanta. L'hétérogénéité du visuel. 1/3: La diversité sensible. Limoges: Presses Universitaires de Limoges, 2005, p.83-104.

   

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ATUALIZAÇÃO
* Texto originalmente publicado em 19 de novembro de 2020.
* Atualizado em 26 de fevereiro de 2023.
  

   

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