A palavra impregnação tem um duplo significado (talvez as duas faces de um mesmo sentido): por um lado, fala de um preenchimento, como um perfume que impregna o ambiente; por outro, o termo carrega um radical latino (praegnans) que o relaciona à ideia de gestação (de onde vem pregnancy, palavra inglesa para gravidez, e também o português prenhe). Ao mesmo tempo, um preenchimento e um potencial de geração de vida, de nascimento, um sopro para fora. O primeiro sentido, mais rasteiro, poderia facilmente englobar as diferentes estratégias de inserção de fotografias nas narrativas literárias, ou, no caminho inverso, a inserção de textos de terceiros em livros de fotografia. Contudo, é o segundo sentido, centrífugo, que nos propõe leituras mais frutíferas – ou prenhes, se assim quisermos. Seja nos romances, nos poemas ou nos fotolivros, a incorporação de uma outra linguagem ao discurso parece se dar, quase sempre, mais em favor da “geração de vida” do que do mero preenchimento de lacunas. De um lado, nas obras literárias, a imagem quase nunca é simples ilustração; de outro, nos fotolivros, o texto incorporado quase nunca é mera legenda.
Em Noite dentro da noite (2017), romance do matogrossense Joca Reiners Terron, cada capítulo é introduzido por uma fotografia rasurada (parte dos argumentos apresentados aqui derivam da minha dissertação de mestrado). Se à primeira vista as imagens parecem ter função decorativa, a leitura do texto revela conexões mais ambíguas: logo no início, as 13 fotografias são apresentadas pelo narrador como elementos centrais do enredo, conectados a um segredo que é também o motor da trama. E talvez ambiguidade seja o termo mais preciso para definir a imprecisão que impregna de sentidos essas estratégias.
Páginas do romance Noite dentro da noite (2017), de Joca Reiners Terron.
O uso das fotografias no romance de Terron parece-me exemplar porque aponta precisamente para essa ambiguidade, ou para as possibilidades da imagem quando inserida no texto literário. Em livro dedicado a pensar os contatos entre literatura e fotografia, a crítica argentina Natalia Brizuela questiona o que chama de “realismo supostamente inegável” da fotografia. O livro é Depois da fotografia: uma literatura fora de si (2014) e nele Brizuela sustenta que a ideia mesma de realismo entra em crise se pensarmos a fotografia em relação ao ato da sua leitura (ao seu presente, não ao seu passado): “se entendemos que a fotografia muda, que é outra em cada instância em que é olhada, então não há uma realidade a que esta remeta” (BRIZUELA, 2014, p. 42). E é nesse sentido que as imagens parecem querer atuar em Noite dentro da noite. Ao serem entranhadas entre os parágrafos de uma narrativa ficcional, guardando ou não relação com personagens ou eventos da história, as fotografias deixam de pertencer ao domínio do referente, ao “isso foi” barthesiano, ou melhor, incorporam um referente que só existe na ficção: são “um espelho que reflete algo que não existe fora do espelho” (BRIZUELA, 2014, p. 42), em mais uma imagem proposta pela autora argentina.
Detalhe da imagem que abre o primeiro capítulo do romance Noite dentro da noite (2017), de Joca Reiners Terron.
A fotografia rasurada que abre o primeiro capítulo do romance, “História do esquecimento”, mostra uma pessoa, vestindo roupas de inverno escuras, que se contrapõe a um desfiladeiro de águas congeladas. Essa fotografia ganhará diferentes sentidos ao longo da trama: primeiro, como representação (essa palavra problemática) das Cataratas do Iguaçu congeladas – uma invenção do imaginário da mãe do protagonista, que busca também representar a visão de um tempo paralisado, “em pane”; depois, como elemento material: a página dupla de uma antiga revista Manchete que relembra o congelamento das Cataratas do Niágara em 1916. Inserida logo no começo do romance, a imagem assombra o leitor no decorrer de uma leitura em que despontam múltiplas referências ao gelo, ao frio, à neve, ao tempo e à história em pane (FEHLAUER, 2020). A cada leitura, a mesma fotografia torna-se outra, e em nenhum momento sentimos a necessidade de descobrir qual delas será a verdadeira (outra palavra problemática). Ao requisitar um novo sentido a cada aparição, a fotografia das cataratas congeladas parece ratificar a proposição antirrealista de Brizuela, apontando com muito mais ímpeto para fora (para leituras possíveis) do que para uma suposta origem (ou realidade).
Na poesia, um exemplo que joga com essa porosidade entre linguagens é Parque das ruínas (2018), da carioca Marília Garcia. Classificado na ficha catalográfica como “poesia brasileira”, o livro parece apontar para os limites de um gênero já de partida incontível, por algumas razões: 1) o poema é narrativo, porque vamos acompanhando certos percursos e micro-histórias na voz da narradora, como o relato sobre a gestação do texto em um passeio pelo Rio de Janeiro, que acaba dando título ao poema (Parque das Ruínas é também um parque e centro cultural localizado no bairro de Santa Teresa); 2) o poema é ensaístico, porque acompanhamos também o desenrolar de um pensamento narrado em primeira pessoa, o que dá a impressão de ser a própria autora quem conversa com o leitor; 3) por fim, o texto é também impregnado por fotografias, no sentido que discutimos aqui.
Uma das microfotografias da série The topography of tears, de Rose-Lynn Fisher,
que integram o livro Parque das ruínas (2018), de Marília Garcia.
O poema que dá título ao livro começa com “uma epígrafe em forma de imagem”, segundo a autora; um conjunto de microfotografias da série The topography of tears, da artista estadunidense Rose-Lynn Fisher. Mais uma vez, uma ambiguidade se instala, tanto no título dado pela artista (A topografia das lágrimas), que propõe uma leitura geográfica de um elemento minúsculo, quanto na leitura que faz a poeta a partir das imagens. Em ambos, convivem propositalmente uma dimensão macroscópica (“terrenos / plantações / uma cartografia vista de cima”) com uma outra, microscópica (“um pequeno instante na vida de uma lágrima”). Ao longo do poema, a linearidade dos versos narrativo-ensaísticos vai sendo interrompida por fotografias – algumas históricas, outras aparentemente criadas pela própria autora – que parecem querer dar sequência aos versos, prolongando-os sem descrevê-los. No posfácio ao livro, a crítica portuguesa Joana Matos Frias destaca o papel da imagem em Parque das ruínas, chamando a atenção para o lugar igualmente ambíguo da imagem fotográfica, situada a meio caminho entre um princípio histórico, documental, ou seja, macroscópico (“tal como a ruína, também ela é traço, resto, rasto, objeto do tempo inscrito no tempo”), mas também como elemento responsável, na Modernidade, “pela invenção do cotidiano”, ou seja, a fotografia como método para a construção de uma narrativa pessoal – a lágrima no microscópio.
A inserção de imagens na literatura, ainda que não seja uma novidade, é menos comum do que o seu par contrário: a inserção de fragmentos literários em livros de fotografia. Nesses casos, os versos ou parágrafos que impregnam as narrativas visuais parecem querer desafiar a proposição que Walter Benjamin faz sobre a legenda na sua Pequena história da fotografia. Para Benjamin (1985, p. 107), a fotografia produz um “efeito de choque [que] paralisa o mecanismo associativo do espectador”. Assim, “caberia ao crítico da cultura legendar essas imagens, dando a elas seu sentido político” (SELIGMANN-SILVA, 2012, p. 131). Sem a legenda, conclui Benjamin, “qualquer construção fotográfica corre o risco de permanecer vaga e aproximativa”.
Contrariando, talvez, o que diz Benjamin, no caso dos livros fotográficos que incorporam textos literários, a intenção parece ser muito mais a de produzir ruídos que justamente interfiram na leitura que fazemos das imagens. Em Nakta (1996), de Miguel Rio Branco, por exemplo, as cenas e cores viscerais da fotografia de Rio Branco dialogam com o poema Noite fechada, do francês Louis Calaferte. “Noite / Fino grau da penetração / Osso pensante / Alvo dos mortos / Imóvel / Habito minha noite”, dizem os primeiros versos do poema. Em entrevista, o fotógrafo afirma que escolheu o poema por sua “contundência”, e porque nele “a morte e a sensualidade são elementos sempre presentes”. Apesar da aparente consonância, parece-me que texto e imagens operam em vetores de sentido contrários – enquanto o poema puxa para dentro de um eu, as fotografias mostram um movimento para uma catarse, um fora de si. E talvez resida justamente nesse contraste a força do trabalho.
Nakta (2006), de Miguel Rio Branco.
Vídeo de Rafael Bosco Vieira.
As três obras discutidas acima representam um pequeno recorte de um campo imensamente fértil para a análise das relações entre texto e imagem, visto que propõem reflexões riquíssimas sobre o próprio estatuto da imagem (seja ela fotográfica ou literária). A qual realidade, por exemplo, uma fotografia se refere quando está inserida em uma obra de ficção? E o que isso pode nos dizer sobre a fotografia em si e sobre a presença inescapável das imagens no nosso cotidiano? Mais uma vez, não há respostas, apenas conjecturas, proposições que brotam dos livros e se enredam à vida.
Paulo Fehlauer
Fotógrafo e escritor, doutorando em Teoria e História Literária na Unicamp
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REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. I: Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BRIZUELA, Natalia. Depois da fotografia: uma literatura fora de si. Trad. Carlos Nougué. São Paulo: Rocco, 2014. 272 p.
FEHLAUER, Paulo Marcelo. Fantasmas em palimpsesto: leituras a partir de “Noite dentro da noite”, de Joca Reiners Terron. Dissertação (mestrado em Estudos Literários). Universidade Federal de São Paulo: Guarulhos, 2020. Disponível em <https://repositorio.unifesp.br/handle/11600/62120>. Acesso em out. 2023.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A fotografia em Walter Benjamin: a "dialética na imobilidade" e a "segunda técnica". Revista brasileira de psicanálise, São Paulo, v. 46, n. 2, p. 121-136, jun. 2012. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2012000200011&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em out. 2023.
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SUGESTÕES
A lista abaixo reúne publicações que, em uma primeira leitura, possuem elementos que as aproximam desta constelação denominada Diálogos. Inclui títulos catalogados na Base de Dados de Livros de Fotografia e outras obras não catalogadas, que compõem o acervo particular deste autor. Esse índice é apenas uma sugestão, nunca uma categorização.
As fantasias eletivas – Carlos Henrique Schroeder As visitas que hoje estamos – Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira Capão Pecado – Ferrez Cidade sem sombras – J. R. Duran É sexta de carnaval: o ensaio é geral – Alcyr Cavalcanti Ensaio Geral – Nuno Ramos Extremo oeste – Paulo Fehlauer História natural da ditadura – Teixeira Coelho Junco – fotografias e poemas Nuno Ramos La que sabé – fotografias Kika de Marco Machado – Silviano Santiago Nakta – fotografias Miguel Rio Branco ; poemas Louis Calaferte Noite dentro da noite – Joca Reiners Terron Nove Noites – Bernardo Carvalho O amor dos homens avulsos – Victor Heringer O livro das postagens – Carlito Azevedo O prazer das imagens – fotografias Hugo Rodrigo Octavio Opisanie Swiata – Veronica Stigger Os esquilos de Pavlov – Laura Erber Parque das ruínas – fotografias e textos Marília Garcia Pré-história de uma imaginação pessoal – Adriana Aranha Puro gesto – Teixeira Coelho Rio erotico : the sensuous photography of Otto Stupakoff – fotografias Otto Stupakoff Satolep – Vitor Ramil Sob a sombra da aboboreira – Ricardo Domeneck Sonho interrompido por guilhotina – Joca Reiners Terron Terra avulsa – Altair Martins
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dilatados
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