Fotografia e Literatura (parte 6): Alusões: duas ou três faces

Como temos visto até aqui, não são poucos os autores que pensaram a fotografia nos termos de uma arte poética e vice-versa. Para o escritor argentino Julio Cortázar (2013, p. 147), de forma bastante simplificada, o conto e a fotografia se avizinham por funcionarem ambos a partir de um limite, um recorte no tempo e no espaço. Isso não implica uma limitação, diz Cortázar, mas uma impulsão do leitor ou do espectador em um sentido que parte de dentro dos limites (do conto ou da fotografia) para o lado de fora deles. Ou seja, aquilo que não é dito ou mostrado é que nos impele a imaginar. Por oposição, segue Cortázar, o romance seria parente do cinema. O crítico e escritor mexicano Octavio Paz vai ainda mais longe ao reforçar a ambivalência desses contatos entre fotografia e poesia: 

A imagem poética é sempre dupla ou tripla. Cada frase, ao dizer o que se diz, diz outra coisa. A fotografia é uma arte poética porque, ao nos mostrar isto, alude ou apresenta aquilo. Comunicação contínua entre o explícito e o implícito, o já visto e o não visto. O domínio próprio da fotografia, como arte, não é diferente do da poesia: o impalpável e o imaginário. Mas revelado e, por assim dizer, filtrado, pelo visto. (PAZ apud NAVAS, 2017, p. 105)

  

Nas obras reunidas neste conjunto, que chamo de Alusões, uma das duas linguagens, seja ela a literatura ou a fotografia, alude, ou seja, faz referência à outra, o que pode se dar de forma mais ou menos direta, como veremos, mas sempre no sentido dessa comunicação entre o explícito e o implícito, como propõe Octavio Paz. 

Por exemplo, podemos pensar em obras literárias que transformam a fotografia em tema ou personagem da narrativa, como é o caso de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2005), romance do paulista Marçal Aquino. O protagonista é Cauby, um fotógrafo que convalesce em uma pensão barata no interior do Pará. A razão do seu desespero é Lavínia, uma mulher misteriosa e sedutora, casada com um pastor evangélico. Em um dos trechos do romance, o autor fala do momento em que Lavínia descobre a fotografia: 

Inscreveu-se num curso de fotografia, comprou no crediário uma câmera ordinária e andava com ela pra baixo e pra cima, fotografando a esmo. Vem dessa época uma fantasia curiosa. Funcionava assim: Lavínia escolhia um homem entre os transeuntes, ao acaso, e passava a segui-lo pelas ruas até onde fosse possível. Brincava de imaginar que podia ser seu pai. Ela dava preferência a homens mais velhos e, sem que percebessem, chegava a fotografá-los. Os tipos variavam, de executivos a aposentados de boné e jornal debaixo do braço. Lavínia não tinha como saber, mas seu pai já estava morto e enterrado havia anos. (AQUINO, 2005, n.p.)

  

Se olharmos mais a fundo, perceberemos que a fotografia, aqui, não é apenas mais um tema, como são também o amor, a traição etc. Lavínia, mesmo sem ter como sabê-lo, realiza um exercício criativo que embute uma certa visão conceitual sobre a linguagem fotográfica, colocando a câmera no lugar de uma ferramenta com que empreende uma busca íntima, e também a construção imaginária de uma figura paterna (a estratégia remete, por exemplo, a trabalhos da artista francesa Sophie Calle, como Suite Vénittiene, de 1979). Uma tese que proponho é a de que toda obra literária que alude à fotografia traz embutida uma certa leitura particular sobre o próprio estatuto das imagens fotográficas, como se cada obra abrigasse uma espécie de semente para uma possível teoria da fotografia.

Migrando para o campo da poesia, um exemplo de fácil compreensão é o livro Ensaios fotográficos (2006 [2000]), do matogrossense Manoel de Barros. O pequeno volume explora em diversas camadas aquela afinidade apontada por Paz, como ocorre no poema “O fotógrafo”:

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
(...)
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre. (BARROS, 2006, p. 11)

  

O eu-lírico do poema fotografa: o silêncio, o perfume, a existência de uma lesma; o perdão; o sobre; o poema “Nuvem de calças”, de Maiakovski. Em “O punhal”, outro poema, ele fotografa uma metáfora; em “O vento”, fotografa um “vento de crinas soltas”. 

Se nos versos acima as referências são explícitas (ainda que guardem implícitos universos inteiros), em “Auto-retrato” a alusão proposta por Manoel de Barros é mais sutil, e joga com o sentido literário do retrato enquanto autobiografia, como fez também James Joyce em seu primeiro romance, Retrato do artista quando jovem, de 1916. Diz Manoel de Barros em seu autorretrato:

Ao nascer eu não estava acordado, de forma que não vi a hora. 
Isso faz tempo.
Foi na beira de um rio.
Depois eu já morri 14 vezes.
Só falta a última.
(...)
Tenho uma confissão: noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira. (BARROS, 2006, p. 45)

   

Invertamos agora o lado da equação e passemos a olhar pela face da fotografia, a partir de livros que são primordialmente fotográficos, mas cujas narrativas (abordagem, edição etc.) aludem às formas literárias. Aqui, um dos elementos mais importantes será a sequência, o que remete também à montagem, tarefa típica do cinema, e que nos devolve à comparação que faz Cortázar sobre o conto e a fotografia, o romance e o cinema. Ao comentar a ascensão dos fotolivros nos últimos anos, decorrente entre outros fatores da acessibilidade proporcionada pela impressão digital, o crítico inglês Gerry Badger se pergunta se a verdadeira força da fotografia estaria realmente no seu poder de síntese, ou se “não seria a fotografia, em essência, uma arte literária, uma arte em que o fotógrafo não é propriamente um manipulador de formas no interior da moldura fotográfica, mas antes um narrador que se vale de imagens em vez de palavras, alguém que conta uma história?”.

  

Folie à deux (2019), de Felipe Abreu, com texto em folhas encartadas.

  

Ainda que reforce que a popularização dos fotolivros traz a reboque um sem número de publicações “dignas de esquecimento”, Badger reconhece que o cenário tem oferecido, nos últimos anos, um terreno fértil para experimentações cuja potência reside no sequenciamento e na construção de narrativas. Entre tais experimentos, um exemplo pode ser Folie à deux (2019), de Felipe Abreu. Composto por imagens contemporâneas, fotografias de arquivo e por pequenos fragmentos textuais, o livro oferece uma série de pistas, indícios que convidam o espectador/leitor a se colocar no lugar de um suposto investigador, cuja tarefa é especular sobre possíveis conclusões para uma série de assassinatos. A obra nos coloca também em estado de dúvida permanente sobre o caráter real ou fictício dos eventos retratados, explorando uma ambivalência fundamental da imagem fotográfica: a fronteira esfumaçada entre documento e invenção. Abreu é também autor de uma dissertação sobre o tema da sequência na fotografia contemporânea, realizada a partir da análise de fotolivros ganhadores do prêmio Aperture / Paris Photo.

    

The best of Mr. Chao: a futurologist collection (2019), de Guilherme Gerais.

    

Um último exemplo, que segue trilha semelhante, é The best of Mr. Chao: a futurologist collection (2019), de Guilherme Gerais, cujo título pode ser traduzido como O melhor do Sr. Chao: uma coleção futurologista. Segundo o autor, a publicação “apresenta um arquivo mágico de objetos estranhos e maravilhosos reunidos por um pesquisador fictício, Mr. Chao”. Tais características nos transportam diretamente ao campo da literatura de ficção, visto que implicam o desenvolvimento de um personagem fictício, dotado de uma visão de mundo particular, como volta a sugerir Guilherme Gerais: “a coleção mostra seu fascínio pela relação entre natureza, artifício e avanço tecnológico.” Além disso, o tema da futurologia, bem como as engenhocas absurdas de Mr. Chao, aproximam o livro de um gênero particular da literatura: a ficção científica, ou ficção especulativa.

Nos exemplos apresentados acima, é grande a variedade de possíveis alusões recíprocas entre fotografia e literatura. Se no caso das obras nativas da literatura as referências são mais evidentes (um personagem fotógrafo, por exemplo), as estratégias utilizadas pelas obras centradas na fotografia parecem ser de ordem mais sutil e propensa à discussão. Basta inventar um personagem fictício para que um fotolivro faça alusão à literatura? Se a sequência é um elemento de aproximação com a literatura, então todo fotolivro sequencial automaticamente fará parte desse conjunto? E o que dizer de uma obra não sequencial? Como ressalto desde o início desta série de artigos, a proposta aqui é mais especulativa do que definitiva, mas algo me atrai profundamente na pergunta de Gerry Badger que mencionei há pouco, a ponto de contaminar toda essa reflexão: não seria a fotografia, em essência, uma arte literária? Não seria o fotógrafo, antes de tudo, um narrador? 

   

Paulo Fehlauer
Fotógrafo e escritor, doutorando em Teoria e História Literária na Unicamp

   

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REFERÊNCIAS

AQUINO, Marçal. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 
BARROS, Manoel de. Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2006.
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. Trad. Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2013.
NAVAS, Adolfo Montejo. Fotografia & poesia (afinidades eletivas). 2. ed. São Paulo: Ubu, 2017. 

    

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SUGESTÕES 

A lista abaixo reúne publicações que, em uma primeira leitura, possuem elementos que as aproximam desta constelação denominada Diálogos. Inclui títulos catalogados na Base de Dados de Livros de Fotografia e outras obras não catalogadas, que compõem o acervo particular deste autor. Esse índice é apenas uma sugestão, nunca uma categorização. 

16'39'' : a extinção do reino deste mundo – Ana Luisa Lima e Fernanda Rappa
A herança de monte perdido – Eduardo Cestari, Eduardo Cestari, Lisette Lagnado e Marion Strecker
A iludida : uma fotonovela de Walda Marques – Walda Marques
A literatura na lente de Daniel Mordzinski – Daniel Mordzinski
Atenção : isto pode ser um poema – Cauê Maia, Patrícia Bagniewski, Patrícia Del Rey e Rebeca Damian (orgs.)
Dissonante, vago – Garapa
Enquanto os dentes – Carlos Eduardo Pereira
Ensaios fotográficos – Manoel de Barros
Este seu olhar – Regina Zilberman (org.)
Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios – Marçal Aquino
Fotofofocas do Marco Aurélio nº 1 : o que você não viu e nem ouviu na campanha do Internacional – Telmo Cúrcio
Hercule Florence – Thierry Behlassen
Imagens da literatura – Renato Parada
Intergaláctico – Guilherme Gerais
LVBRYKA – Eder Chiodetto e Fabiana Bruno (orgs.)
Margem – Graciela Kruscinski
Mens Rea : a cartografia do mistério – Mac Adams
Mera fotografia – Carlos Eduardo de Magalhães
Na tentativa de abrir feri – Giovane Ferreira
O casamento de Mary People – Mariani Pessoa
O caso da estranha fotografia – Stella Carr
O fotógrafo – Cristovão Tezza
O livro das emoções – João Almino
O lugar do escritor – Eder Chiodetto
O tempo em estado sólido – Tércia Montenegro
Oito minutos dentro de uma fotografia – Ganymédes José
Retratos da garoupa – Fernanda Grigolin
The best of Mr. Chao – Guilherme Gerais
Travessias de Angelina e Arsenio – Celia Azevedo

  

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Fotografia e Literatura (parte 4): Impregnações: espelhos ambíguos
Fotografia e Literatura (parte 5): Convívios: “eu é um outro” 
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