Há um número significativo de fotolivros brasileiros que se particularizam por serem traduções. Distintos entre si, desenvolvem-se como processos comunicacionais que se referem a trabalhos inteiros ou trechos, conjuntos de obra, características e estilos de determinada autora, movimentos e gêneros artísticos, além de mídias como literatura, cinema, escultura, arquitetura, teatro etc.
Em sentido amplo, o termo “tradução” diz respeito a uma operação criadora capaz de envolver as mais distintas estruturas semióticas. Ainda na década de 1950, Roman Jakobson (2007: 11) definiu como “tradução intersemiótica” a transmutação de signos de um sistema ou meio para outro. Pouco mais tarde, ocupando-se da literatura, Haroldo de Campos (2011: 21) usou a expressão “tradução criativa” para designar o processo de “transcriação”, de “re-criação” de uma obra em um novo original – fenômeno que hoje já podemos considerar como não restrito à comunicação verbal.
Nos recentes estudos de intermidialidade, fenômenos de tradução são abordados em diferentes categorias – em uma tentativa de sistematização das especificidades das relações. Podemos reunir essas categorias em dois eixos: um que considera os processos de tradução nos quais uma obra, ou parte dela, é transposta de um meio ao outro – como ocorre nos fotolivros de Maureen Bisilliat que traduzem parte da prosa e personagens literários para a fotografia –; e outro que considera a tradução na forma dos processos em que características de conjuntos de obras, gêneros, movimentos ou meios são referenciados ou aludidos em um meio distinto. Podemos citar como exemplo deste segundo eixo as múltiplas referências ao cinema feitas por Vitor Casemiro em Shadow over Shadow 1.
Como contextualização teórica, no primeiro grupo encontramos propostas como a de Irina Rajewsky (2012: 59), que descreve como “transposição midiática” o processo genérico de transformação de uma obra de um meio para outro, explorando as possibilidades materiais e as convenções desse novo meio. Na mesma esteira, Werner Wolf (2009: 138) chama de “transposição intermidiática” os processos criativos de “transferência entre mídias”, salientando que se trata de relações que podem envolver tanto as obras como um todo quanto apenas algumas de suas partes. Importam, nesse tipo de tradução, as maneiras pelas quais o novo meio é experimentado na busca por correspondências com a obra-fonte.
A respeito do segundo eixo, tomando como base os mesmos autores, podemos considerar as referências como casos de tradução nos quais um trabalho tematiza, evoca ou mimetiza elementos ou estruturas de uma mídia convencionalmente distinta, usando os próprios recursos e especificidades da mídia onde a referência ocorre (Wolf, 2002). Rajewsky (op. cit.) descreve tal processo como o forjamento de uma mídia em outra, como a reprodução dos aspectos materiais de uma por meio da materialidade da outra. Em casos desse tipo, aspectos formais e conceituais da mídia evocada funcionam como um determinante. Aquilo que é traduzido fornece elementos – geralmente padrões e especificidades de estruturação e organização de sistemas de signos – que passam a funcionar como parâmetro para o que é desenvolvido na mídia onde a tradução ocorre.
Neste artigo abordo, de maneira introdutória, fotolivros-tradução, agrupando-os em categorias2 que foram desenvolvidas com base nas propostas teóricas sumarizadas. As seções a seguir identificam e descrevem casos de livros fotográficos que se desenvolvem predominantemente como (1) transposição parcial ou integral de uma obra originada em outro meio; (2) transmediação de um conjunto de obra, estilo ou especificidade de determinada autora; ou como (3) tradução das especificidades de gêneros, movimentos artísticos ou outros meios.
Fotolivros-tradução de outros trabalho
Quando se trata da transposição de trabalhos específicos, as obras literárias e outras produções verbais apresentam-se como os mais recorrentes objetos dos fotolivros-tradução. Não restritas a interesses miméticos ou a questões de discursividade, as publicações desse tipo frequentemente apresentam relações sofisticadas entre produção literária e livro fotográfico. É interessante observarmos, por exemplo, que uma quantidade expressiva de fotolivros que traduzem textos verbais utilizam recortes e extrações da obra fonte, fazendo com que a materialidade da obra traduzida atue constituindo a materialidade da própria tradução. Isso ocorre em uma variedade de fotolivros que traduzem desde obras literárias como A hora da estrela (Lispector, 1977) – transposta para A delicadeza essencial ou… (Cardoso, 2017) – até trabalhos como Verblist (Serra, 1967-68) – origem de 10 verbos, 11 imagens, 1 lembrança (Tavares, 2016).
Nesses livros, o processo de realocação, na tradução, das partes extraídas da obra fonte e de justaposição dessas partes com as imagens fotográficas presentes na obra alvo, confere novos sentidos a esses recortes. Explorando o pars pro toto – uma das ferramentas criativas recorrentes nas artes –, esses fotolivros não só levam as extrações da obra precedente a funcionar como referindo-se ao todo do qual são recortadas, como a atuar como um novo todo. Traduções desse tipo conferem, à parte extraída da obra fonte, autonomia para engendrar, por si mesma, processos de produção de sentido irrestritos, sobretudo quando justapostos com as criações visuais (imagens fotográficas, colagens, desenho gráfico etc.) que também compõem o livro. Os casos mais interessantes são aqueles nos quais os trechos do original não funcionam como legenda para as imagens nem constrangem as fotografias a atuarem como algum tipo de figuração do texto, mas aqueles que provocam ambos texto e imagem a atuarem em conjunto para referir-se a algo novo, que ocorre e emerge no fotolivro.
Maureen Bisilliat está entre as fotógrafas cujos fotolivros-tradução transmediam recortes da obra fonte, tornando-as constituintes de sua própria materialidade. Podemos citar, como exemplo, A João Guimarães Rosa (1979 [1969, 1974]), Sertões: luz e trevas (2019 [1982]) e O cão sem plumas (1984). As publicações integram um conjunto um pouco mais amplo de fotolivros da autora que, pela indissociabilidade da relação entre imagem fotográfica e texto verbal, foram recentemente descritos por Del Castillo (2018: 79) como “livros de fototexto”. Além da autoria, esses livros fotográficos têm em comum o processo criativo. Em todos os casos, trechos da obra referenciada são extraídos e combinados a ensaios visuais já existentes ou produzidos para compor as traduções (ibidem). Ao falar sobre esses fotolivros, Bisilliat afirma que o processo criativo se dá como uma busca por estabelecer “equivalências fotográficas” (ibidem, 79) com as obras literárias.
No primeiro caso, A João Guimarães Rosa, a fotógrafa encara o desafio de traduzir de maneira intersemiótica a obra de Rosa considerada por muitos como “intraduzível” (Freitas, 2019, s/p) de modo interlinguístico. Desenvolvida tendo a colaboração do próprio autor da obra literária, a tradução de Grande sertão: veredas (Rosa, 1956) para o fotolivro A João Guimarães Rosa3 visa transpor para a imagem fotográfica e para a relação fotografia-texto um sertão que não é descrito, mas criado por Rosa. Se, no livro, Guimarães Rosa experimenta o sertão em um processo que chega a se tornar construção da linguagem verbal, no fotolivro Bisilliat experimenta a fotografia e o livro fotográfico como reconstrução de um sertão (com paisagens e personagens) cuja existência ocorre indissociada da materialidade da própria palavra constituída na obra literária.
A João Guimarães Rosa (3. ed., 1979), de Maureen Bisilliat.
A investigação do sertão literário por Bisilliat dá origem a outro fotolivro-tradução: Sertões: luz e trevas, criado a partir da prosa de Euclides da Cunha. Se no fotolivro anterior as viagens a Minas Gerais e os ensaios fotográficos delas resultantes tiveram como precedente o contato da fotógrafa com a prosa e seu autor, no caso de Os Sertões (Cunha, 1902) a tradução inicia-se depois das imagens fotográficas já obtidas, feitas por Bisilliat entre 1967 e 1972 no nordeste brasileiro (Del Castillo, op. cit.). A artista apostou na experimentação da fotografia para alcançar equivalências fotográficas com uma literatura dedicada a criar e desvelar um sertão que, como ela mesma descreve, é um “mundo ambivalente, real e mítico, onde homem e natureza se confundem” (Bisilliat, 1982: 13). Para relacionar com os trechos retirados das três primeiras seções da obra fonte, Bisilliat refotografou parte de suas imagens, utilizando lentes para macroampliações, fazendo uso de folhas de contato e experimentando recursos como luz de tungstênio para obter coloração (Del Castillo, op. cit.). Como resultado, e a exemplo da obra que traduz, Sertões: luz e trevas ocorre no espaço fronteiriço entre a documentação de uma realidade social e a experimentação estética da linguagem por meio da qual se materializa.
Sertões: luz e trevas (3. ed., 2019), de Maureen Bisilliat.
O cão sem plumas, poema de João Cabral de Melo Neto (1950), traduz-se no fotolivro homônimo de Bisilliat (1984). O livro combina, em dípticos, versos do poema com imagens de crianças e mulheres pescadoras conhecidas como “caranguejeiras”, na região de Livramento, na Paraíba. Parte de um ensaio realizado, inicialmente, para integrar uma reportagem da revista Realidade, as imagens fotográficas combinadas ao poema nesse fotolivro-tradução são, em sua maioria, em preto em branco, feitas de ângulos próximos do objeto de registro, como em uma tentativa de imersão nos personagens imersos na lama e na própria densidade objeto do poema4. Nas palavras da autora, trata-se de mais um exercício de tradução que visa alcançar “um traçado de equivalências, onde texto e imagem se justapõem, por consonância ou dissonância se agregam, e se encontram em equidistância de voo” (Bisilliat in Del Castillo, op. cit., 86).
O cão sem plumas (1984), de Maureen Bisilliat.
Além de fotolivros-tradução como os exemplos acima, que se referem à obra fonte apropriando-se de seus recortes, há os que traduzem trabalhos literários experimentando a transmutação de aspectos do signo verbal para a imagem fotográfica. Podemos descrevê-los como casos mais radicais de transposição, uma vez que traduzem a obras desenvolvidas em um sistema de signos distinto, usando seus próprios recursos semióticos. É o caso de Funes, de Lucas Eskinazi (2019), que, sem recorrer ao uso do texto verbal (à exceção do título), traduz para o fotolivro o conto “Funes, o memorioso”, de Borges (1942). Exemplo semelhante está em Ser tão gerais, de Alexandre de Guzanshe (2019). Baseado em Grande sertão: veredas, o fotolivro constrói-se por meio de uma sequência de imagens fotográficas resultantes de viagens feitas pelo autor ao sertão mineiro entre 2012 e 2018. Diferentemente da tradução feita por Bisilliat, o texto verbal presente na versão de Guzanshe restringe-se aos artigos apresentados como prefácio e posfácio.
Funes (2019), de Lucas Eskinazi.
Ser tão gerais (2019), de Alexandre de Guzanshe.
Fotolivros-tradução de autoras e conjuntos de obras
Tão vastas quanto as maneiras de traduzir são as escolhas do que traduzir. No que diz respeito aos fotolivros, além das relações diretas com trabalhos específicos – como vimos acima –, há criações que têm como objeto conjuntos de obra, estilo ou especificidades de artistas. Como fenômenos de transmidialidade, esses livros fotográficos funcionam como um tipo de investigação e elaboração criativa dos atributos formais, estéticos e discursivos que convencionalmente passam a ser identificados como característicos de determinada autora. É o caso de Bahia amada Amado: o amor à liberdade & a liberdade no amor, de Maureen Bisilliat (1996), que transmedia a obra de Jorge Amado e se refere, diretamente, a pelo menos 12 textos do escritor; e de Viagem pelo fantástico, de Boris Kossoy (2021 [1971]) que faz alusão ao realismo mágico, ao surrealismo e ao cinema noir.
Entre os fotolivros que traduzem características que particularizam determinada artista ou escritora, encontramos publicações como Nas trilhas do Rosa, de Fernando Granato e Walter Firmo (1996); Caminhando com Portinari, de Alan Nielsen (2012); Cada dia meu pensamento é diferente, de Tatiana Altberg (2013); Viagem à Bahia do cacau e Jorge ressignificando Amado, de Valdemir Cunha (2016, 2017); Sor Juana, de Sofia Brito (2018); Encontro com Liuba, de Claudia Jaguaribe (2019); e Quem sabia já morreu, de Ciça Carboni (2019).
Quando observamos a diversidade entre os fotolivros que traduzem Guimarães Rosa, nos atentamos também para a pluralidade de formas pelas quais a tradução pode atuar como processo criativo em livros fotográficos. No caso do exemplo alocado nesta seção, o que vemos são as experiências do autor pelo sertão mineiro, suas anotações e conjunto de obras (sobretudo Grande sertão: veredas, obviamente) atuando como fonte para Nas trilhas do Rosa (Granato e Firmo, 1996). As fotografias e textos que integram esse fotolivro documental resultam de viagens realizadas pelos autores por Minas Gerais, utilizando as cadernetas de Rosa como roteiro.
Nas trilhas do Rosa: uma viagem pelos caminhos de Grande Sertão: Veredas (1996),
de Walter Firmo e Fernando Granato.
Caminhando com Portinari (Nielsen, 2012) é um fotolivro que poderia figurar na primeira seção deste texto, uma vez que relaciona imagens fotográficas de Nielsen a trechos de poemas do artista traduzido. Entretanto, como sabemos, fotolivros não se adequam a rótulos ou se enquadram em categorias excludentes. A publicação de Nielsen, como a maioria dos livros fotográficos aqui descritos como tradução, numa análise mais detalhada poderia aderir-se a mais de uma seção ou modo de transposição/referência/alusão. O que ocorre é que, mais que traduzir os poemas de Portinari, o fotolivro de Nielsen desenvolve-se como uma investigação das origens criativas e formação do artista referenciado. Nesse exercício de tradução, os registros feitos por Nielsen da cidade natal de Portinari configuram-se como busca – na paisagem e personagens de Brodowski (SP) – pela origem das obras de Portinari. O fotolivro apresenta-se, assim, como um esforço de reversão do processo tradutório por meio do qual Portinari referenciava a si mesmo em suas próprias obras.
Caminhando com Portinari (2012), de Alan Nielsen.
O universo de Machado de Assis e o Rio de Janeiro por ele elaborado em sua literatura ocorrem como objeto no processo criativo do fotolivro Cada dia meu pensamento é diferente (Tatiana Altberg, 2013). A produção coletiva reúne fotografias de pinhole e microcontos produzidos por 15 integrantes do projeto Mão na Lata. Os processos por meio dos quais a vida e obra de Machado são traduzidas para o fotolivro se dão de maneiras diversas e relacionadas entre si. As transposições podem ser observadas tanto na concepção do fotolivro como um todo, quanto em suas partes relativamente isoladas. O título, por exemplo, remete à frase “Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa”, de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Já as imagens da primeira seção do livro destinam-se a traduzir as paisagens psicológicas criadas por Machado, além dos lugares mencionados nos contos do autor ou relacionados à sua vida. Nas seções seguintes, os textos fonte passam a funcionar como parâmetros para a abordagem imagética feita pelos fotógrafos de seus próprios cotidianos e espaços, assim por diante.
Cada dia meu pensamento é diferente (2013), de Tatiana Altberg.
Outros dois fotolivros que se dedicam a traduzir a relação entre autoras de literatura e seus contextos arquitetônicos (sejam de origem, criação ou inspiração) são Viagem à Bahia do cacau e Jorge ressignificando Amado (Cunha, 2016, 2017). O primeiro, como o nome sugere, transpõe para a fotografia e para o livro fotográfico a cultura do cacau no sul da Bahia, extensamente explorada por Jorge Amado em sua produção literária. O segundo livro dá continuidade ao primeiro, reunindo imagens excluídas na edição de Viagem à Bahia do cacau.
Viagem à Bahia do cacau (2016), de Valdemir Cunha.
Jorge ressignificando Amado (2017), de Valdemir Cunha.
A relação entre literatura e espaço também é explorada por Sofia Brito no zine dedicado à poeta e filósofa mexicana Sor Juana Inés de la Cruz. Em Sor Juana (Brito, 2018), a escritora e monja é referenciada por intermédio de imagens obtidas em uma rua mexicana cujo nome a homenageia. A publicação reúne fotografias feitas por Sofia Brito de objetos por ela dispostos na rua Sor Juana Inés de la Cruz, na Cidade do México.
Sor Juana (2018), de Sofia Brito.
Em Quem sabia já morreu (Carboni, 2019), a autora utiliza dados sobre a vida e obra de Cora Coralina como fio condutor para uma investigação textual e imagética das maneiras pelas quais a mulher é oprimida no Brasil. Ao longo do livro, as fotografias de Carboni são justapostas com trechos que sumarizam trajetórias de mulheres que entraram para a história do país por suas contribuições políticas, sociais, culturais e artísticas.
Quem sabia já morreu (2019), de Ciça Carboni.
Já o fotolivro Encontro com Liuba (Jaguaribe, 2019) evoca o trabalho e características marcantes da escultora referenciada no título. O processo de tradução ocorre por meio de colagens nas quais formas recorrentes nas esculturas de Liuba Wolf convertem-se em figuras que intervêm nas imagens fotográficas de Jaguaribe. O livro evidencia-se como um processo no qual o fotolivro não apenas investiga as experimentações estéticas de Wolf, como atualiza suas proposições ao relacioná-las com fotografia, arquitetura e design.
Encontro com Liuba (2019), de Claudia Jaguaribe.
Um fotolivro cujo objeto de tradução são as especificidades de determinada artista ou um conjunto de obras dificilmente não se apresentará também como tradução, em alguma medida, do gênero, movimento e meio que contextualizam o que é traduzido. Ao referenciar as esculturas de Wolf em Encontro com Liuba, por exemplo, Jaguaribe também produz um livro sobre modernismo, sobre mulheres no modernismo, sobre escultura modernista e sobre o meio escultura.
Fotolivros que traduzem gêneros e outros meios
Os fotolivros-tradução de conjunto de obras, gêneros, movimentos e, principalmente, meios são os casos mais explícitos de referência intermidiática. Em vez de traduzir uma produção específica, eles se destinam a representar (ou seja, têm como objeto) as características materiais e conceituais dos sistemas de signos que constituem o meio aludido. Traduções do tipo são processos nos quais um meio, com suas especificidades materiais e simbólicas, é investigado, utilizando-se os sistemas de signo disponíveis no novo meio. Rajewsky (op. cit., 61) usa a expressão “como se” para descrever o funcionamento de referências desse tipo. A partir dessa noção, podemos considerar os fotolivros-tradução de outros meios como aqueles cujo processo criativo experimenta o meio fotolivro, constrangendo-o a atuar como se fosse algum outro meio – como se fosse literatura ou cinema, por exemplo.
Não custa lembrar que as descrições aqui reunidas não são excludentes. Um fotolivro pode transitar por duas, três ou todas as possibilidades de tradução, justapondo-as entre si. É o que ocorre com alguns dos exemplos reunidos nesta seção. Livros como O cinema e a linguagem fotográfica, de Fernando Braune (2011), e This is a story of a man marked by an image from his childhood, de Walter Costa (2018), por exemplo, referem-se a obras específicas, mas têm como característica predominante a investigação que fazem do cinema como meio, ao simulá-lo no fotolivro.
O cinema e a linguagem fotográfica (Braune, 2011), como o título sugere, ocorre como uma visita à gênese fotográfica do cinema. Resultado de sucessivas intervenções em frames impressos e reimpressos de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (1964), as imagens fotográficas que integram o livro são justapostas com um extenso ensaio que aborda aspectos do cinema como linguagem desde Eisenstein até Almodóvar.
O cinema e a linguagem fotográfica (2011), de Fermando Braune.
This is a story of a man marked by an image from his childhood é outro fotolivro que explora a natureza fotográfica do cinema a partir de uma obra específica. O livro ocorre por meio da justaposição sequenciada de uma seleção de frames extraídos de La Jetée, de Chris Marker (1962). Os entrecruzados processos de tradução que ocorrem no livro vão desde a remediação das imagens nas páginas até a experimentação da montagem como método criativo, passando pelo projeto gráfico – que referencia um dos temas centrais do filme: o tempo. This is a story of a man… emerge de uma operação tradutora que investiga e evidencia o filme objeto como um caso de metassemiose no cinema. O livro apresenta-se como um exercício de engenharia reversa que aponta para a maestria do processo de montagem por meio do qual Chris Marker testa e expande a imagem fotográfica como artefato temporal e narrativo, além de estético.
La Jetée (1962), de Chris Marker.
This is a story of a man marked by an image from his childhood (2018),
de Walter Costa.
Outros casos exemplares de fotolivros-tradução, como Vírgula, de Júlia Godoy (2019), e Shadow over shadow, de Vitor Casemiro (2021), são experimentados como se fossem outros meios (literatura e cinema, no caso), sem o intermédio de uma obra específica. São obras nas quais suas autoras interpretam, simulam, representam e expandem os meios tomados como objeto de tradução, utilizando-se dos recursos materiais e conceituais do livro fotográfico.
Em Vírgula (Godoy, 2019), a pontuação que dá título ao livro é analisada e traduzida por meio de processos nos quais a imagem fotográfica e o fotolivro são constrangidos a referenciar, simular, não só este signo específico como também o sistema verbal como um meio. A publicação investiga e experimenta a vírgula em seus variados aspectos, desde a concepção como elemento gráfico – que fundamenta as escolhas fotográficas e as intervenções criativas feitas nas páginas –, passando por suas funções na constituição semântica de um texto verbal, até seus usos como processo metafórico.
Vírgula (2019), de Júlia Godoy.
Desenvolvendo-se por meio de múltiplas transmediações de especificidades narrativas, estéticas e discursivas do cinema para o fotolivro, é possível que Shadow over shadow (Casemiro, 2021) seja o mais complexo dos exemplos, aqui reunidos, de tradução como processo criativo. No livro, são múltiplas, e estão relacionadas entre si, as referências feitas ao cinema e ao gênero policial característico dos filmes estadunidenses produzidos na primeira metade do século XX. As estratégias de tradução criativa envolvem desde a experimentação da estrutura do fotolivro como meio de investigação da natureza fotográfica do cinema, passando pela apropriação de métodos e artefatos como roteiro e storyboard, até chegar à incorporação (ou remediação) de termos recorrentes em filmes e livros do período referenciado para construir a narrativa textual que se justapõe, no sentido eisensteiniano, à sequência fotográfica.
Shadow over shadow (2021, no prelo), de Vitor Casemiro.
No processo de tradução do cinema policial para o fotolivro, as convenções e clichês de gênero tornam-se parâmetro para a seleção das imagens que compõem a sequência. Garimpadas do acervo da Biblioteca do Congresso estadunidense, as fotografias, além de datadas no mesmo período do padrão cinematográfico referenciado, apresentam características estéticas e narrativas correspondentes com os clássicos da categoria. Entre as escolhas estão, por exemplo, personagens que são homens usando chapéu e vestindo sobretudo – itens usados para caracterizar os detetives em narrativas policiais –, e mulheres cujas roupas e poses remetem ao arquétipo fatal. Os cenários das fotografias consistem em outra referência ao gênero. Majoritariamente internas e noturnas, as locações, que contextualizam a narrativa que se desenvolve no livro, remetem às escolhas (muitas vezes forçadas pelo baixo orçamento) recorrentes nos filmes característicos do gênero traduzido.
Além disso, a experimentação da montagem como método criativo ocorre em Shadow over shadow como mais um modo de referência ao cinema. Os exemplos podem ser observados tanto no livro como um todo – quando nos atentamos para seus critérios de estruturação – quanto em trechos específicos, como é o caso das inserções das fotografias de escadas que, além de remeter aos filmes de Hitchcock, pontuam a sequência de páginas, funcionando como elemento rítmico.
Fotolivros-tradução especificam-se, certamente, já em sua origem. São marcados pela existência de algo precedente que constrange (ou direciona) sua própria ocorrência como uma obra em fotolivro. Entretanto, independentemente dos termos escolhidos para descrevê-los, daquilo que traduzem ou das especificidades de suas relações com seus objetos, os fotolivros-tradução, como qualquer outra tradução criativa, constituem-se como obras autônomas, não subordinadas àquilo que se propõem a traduzir. Trabalhos como os reunidos neste artigo evidenciam o fato de que o fotolivro-tradução é (também e principalmente) um original, um novo original. Trata-se de livros que não se configuram como obras secundárias em relação àquilo que traduzem – por mais excepcional que seja o objeto referenciado, como é o caso da literatura de Guimarães Rosa, por exemplo.
Se considerarmos a perspectiva benjaminiana, ampliando-a para processos além de verbais, podemos, inclusive, afirmar que a tradução, mais do que dever ao original, presta-lhe o serviço de reavivá-lo, desencobrindo-lhe aspectos que até então permaneceram inatingíveis (Benjamin, 2011). A maneira como um sistema de enunciação como o fotolivro traduz algo permite a sofisticação do significado do que é traduzido.
Livros fotográficos criados e propostos como traduções de obras, autoras, características, movimentos, meios etc. são tipos singulares de processos intermidiáticos. Ao longo deste artigo pudemos observar quão sofisticados e desafiadores podem ser os fotolivros nos quais a tradução é considerada como uma operação criativa. Além de atuar sobre o que traduzem, eles expandem e desafiam a imagem fotográfica e o meio fotolivro à uma investigação de si mesmos, de suas próprias habilidades como sistemas de signos e de sua capacidade de engendrar processos específicos de produção de sentido que mantenham relações de similaridade com aqueles ocorridos nos processos artísticos e comunicacionais que são traduzidos.
Ana Paula Vitorio
Pesquisadora pós-doc na University of the Free State, doutora em Literatura pela PUC-Rio.
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NOTAS
1. Para fins de referência, uso como base aqui a versão do boneco de Shadow over Shadow que foi tornada pública em 2021.
2. O agrupamento aqui proposto foi desenvolvido com base nas definições e categorias citadas (tradução intersemiótica, transposição, referência etc.) e na observação preliminar das obras apresentadas como exemplos de fotolivro-tradução. É importante notarmos que as características consideradas neste artigo como critérios para a categorização das obras não são excludentes (podem ocorrer associadas umas com as outras) nem exaustivas (portanto insuficientes para abarcar todos os tipos de exercício de tradução observáveis dentre a variedade de fotolivros já publicados).
3. A escolha do título foi uma forma de homenagear o autor, falecido dois anos antes da publicação.
4. Além de todas as especificidades das relações que mantêm com seus objetos, casos como O cão sem plumas e Sertões: luz e trevas, nos quais imagens produzidas em outros contextos (e com diferentes finalidades) são ressignificadas, convertidas em traduções de obras literárias, evidenciam, também, o papel fundamental da edição na constituição de um fotolivro-tradução.
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REFERÊNCIAS
Benjamin, Walter. A tarefa-renúncia do tradutor. Trad. Suzana Kampff Lages. In: Heidermann, Werner. (Org.). Clássicos da teoria da tradução. Florianópolis: NUT, 2001. p. 66-81.
Bisilliat, Maureen. Sertões, luz & trevas: sequência fotográfica de Maureen Bisilliat sobre textos de Euclides da Cunha. São Paulo: Raízes Artes Gráficas, 1982.
Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011.
Del Castillo, Miguel. Fotografia e literatura nos livros de Maureen Bisilliat. Studium 40 (2018): 76-92. <https://www.studium.iar.unicamp.br/40/06/index.html>
Freitas, Carolina. A João Guimarães Rosa: Sertão e Literatura na Fotografia de Maureen Bisilliat. Blog da BBM, 2019. <https://blog.bbm.usp.br/2019/sertao-maureen-bisilliat/>
Jakobson, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 2007.
Rajewsky, Irina. A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas no debate contemporâneo sobre intermidialidade. In: Diniz, Thais (Org.). Intermidialidade e Estudos Interartes: desafios da arte contemporânea. Belo Horizonte: Rona Editora, 2012.
Wolf, Werner. Intermediality revisited: reflections on word and music relations in the context of a general typology of intermediality. In Lodato, S.; Aspden, S.; Bernhart, W. (eds). Word and music studies, Amsterdam: Rodopi, 2002: 13–34.
______. Relations between literature and music in the context of a general typology of intermediality. Comparative literature: sharing knowledges for preserving cultural diversity, 2009: 1: 133–156.