Fotolivros e tradução criativa

Há um número significativo de fotolivros brasileiros que se particularizam por serem traduções. Distintos entre si, desenvolvem-se como processos comunicacionais que se referem a trabalhos inteiros ou trechos, conjuntos de obra, características e estilos de determinada autora, movimentos e gêneros artísticos, além de mídias como literatura, cinema, escultura, arquitetura, teatro etc.

Em sentido amplo, o termo “tradução” diz respeito a uma operação criadora capaz de envolver as mais distintas estruturas semióticas. Ainda na década de 1950, Roman Jakobson (2007: 11) definiu como “tradução intersemiótica” a transmutação de signos de um sistema ou meio para outro. Pouco mais tarde, ocupando-se da literatura, Haroldo de Campos (2011: 21) usou a expressão “tradução criativa” para designar o processo de “transcriação”, de “re-criação” de uma obra em um novo original – fenômeno que hoje já podemos considerar como não restrito à comunicação verbal.

Nos recentes estudos de intermidialidade, fenômenos de tradução são abordados em diferentes categorias – em uma tentativa de sistematização das especificidades das relações. Podemos reunir essas categorias em dois eixos: um que considera os processos de tradução nos quais uma obra, ou parte dela, é transposta de um meio ao outro – como ocorre nos fotolivros de Maureen Bisilliat que traduzem parte da prosa e personagens literários para a fotografia –; e outro que considera a tradução na forma dos processos em que características de conjuntos de obras, gêneros, movimentos ou meios são referenciados ou aludidos em um meio distinto. Podemos citar como exemplo deste segundo eixo as múltiplas referências ao cinema feitas por Vitor Casemiro em Shadow over Shadow 1.

Como contextualização teórica, no primeiro grupo encontramos propostas como a de Irina Rajewsky (2012: 59), que descreve como “transposição midiática” o processo genérico de transformação de uma obra de um meio para outro, explorando as possibilidades materiais e as convenções desse novo meio. Na mesma esteira, Werner Wolf (2009: 138) chama de “transposição intermidiática” os processos criativos de “transferência entre mídias”, salientando que se trata de relações que podem envolver tanto as obras como um todo quanto apenas algumas de suas partes. Importam, nesse tipo de tradução, as maneiras pelas quais o novo meio é experimentado na busca por correspondências com a obra-fonte.

A respeito do segundo eixo, tomando como base os mesmos autores, podemos considerar as referências como casos de tradução nos quais um trabalho tematiza, evoca ou mimetiza elementos ou estruturas de uma mídia convencionalmente distinta, usando os próprios recursos e especificidades da mídia onde a referência ocorre (Wolf, 2002). Rajewsky (op. cit.) descreve tal processo como o forjamento de uma mídia em outra, como a reprodução dos aspectos materiais de uma por meio da materialidade da outra. Em casos desse tipo, aspectos formais e conceituais da mídia evocada funcionam como um determinante. Aquilo que é traduzido fornece elementos – geralmente padrões e especificidades de estruturação e organização de sistemas de signos – que passam a funcionar como parâmetro para o que é desenvolvido na mídia onde a tradução ocorre.

Neste artigo abordo, de maneira introdutória, fotolivros-tradução, agrupando-os em categorias2 que foram desenvolvidas com base nas propostas teóricas sumarizadas. As seções a seguir identificam e descrevem casos de livros fotográficos que se desenvolvem predominantemente como (1) transposição parcial ou integral de uma obra originada em outro meio; (2) transmediação de um conjunto de obra, estilo ou especificidade de determinada autora; ou como (3) tradução das especificidades de gêneros, movimentos artísticos ou outros meios.

  

Fotolivros-tradução de outros trabalho

   

Quando se trata da transposição de trabalhos específicos, as obras literárias e outras produções verbais apresentam-se como os mais recorrentes objetos dos fotolivros-tradução. Não restritas a interesses miméticos ou a questões de discursividade, as publicações desse tipo frequentemente apresentam relações sofisticadas entre produção literária e livro fotográfico. É interessante observarmos, por exemplo, que uma quantidade expressiva de fotolivros que traduzem textos verbais utilizam recortes e extrações da obra fonte, fazendo com que a materialidade da obra traduzida atue constituindo a materialidade da própria tradução. Isso ocorre em uma variedade de fotolivros que traduzem desde obras literárias como A hora da estrela (Lispector, 1977) – transposta para A delicadeza essencial ou… (Cardoso, 2017) – até trabalhos como Verblist (Serra, 1967-68) – origem de 10 verbos, 11 imagens, 1 lembrança (Tavares, 2016).

Nesses livros, o processo de realocação, na tradução, das partes extraídas da obra fonte e de justaposição dessas partes com as imagens fotográficas presentes na obra alvo, confere novos sentidos a esses recortes. Explorando o pars pro toto – uma das ferramentas criativas recorrentes nas artes –, esses fotolivros não só levam as extrações da obra precedente a funcionar como referindo-se ao todo do qual são recortadas, como a atuar como um novo todo. Traduções desse tipo conferem, à parte extraída da obra fonte, autonomia para engendrar, por si mesma, processos de produção de sentido irrestritos, sobretudo quando justapostos com as criações visuais (imagens fotográficas, colagens, desenho gráfico etc.) que também compõem o livro. Os casos mais interessantes são aqueles nos quais os trechos do original não funcionam como legenda para as imagens nem constrangem as fotografias a atuarem como algum tipo de figuração do texto, mas aqueles que provocam ambos texto e imagem a atuarem em conjunto para referir-se a algo novo, que ocorre e emerge no fotolivro.

Maureen Bisilliat está entre as fotógrafas cujos fotolivros-tradução transmediam recortes da obra fonte, tornando-as constituintes de sua própria materialidade. Podemos citar, como exemplo, A João Guimarães Rosa (1979 [1969, 1974]), Sertões: luz e trevas (2019 [1982]) e O cão sem plumas (1984). As publicações integram um conjunto um pouco mais amplo de fotolivros da autora que, pela indissociabilidade da relação entre imagem fotográfica e texto verbal, foram recentemente descritos por Del Castillo (2018: 79) como “livros de fototexto”. Além da autoria, esses livros fotográficos têm em comum o processo criativo. Em todos os casos, trechos da obra referenciada são extraídos e combinados a ensaios visuais já existentes ou produzidos para compor as traduções (ibidem). Ao falar sobre esses fotolivros, Bisilliat afirma que o processo criativo se dá como uma busca por estabelecer “equivalências fotográficas” (ibidem, 79) com as obras literárias.

No primeiro caso, A João Guimarães Rosa, a fotógrafa encara o desafio de traduzir de maneira intersemiótica a obra de Rosa considerada por muitos como “intraduzível” (Freitas, 2019, s/p) de modo interlinguístico. Desenvolvida tendo a colaboração do próprio autor da obra literária, a tradução de Grande sertão: veredas (Rosa, 1956) para o fotolivro A João Guimarães Rosa3 visa transpor para a imagem fotográfica e para a relação fotografia-texto um sertão que não é descrito, mas criado por Rosa. Se, no livro, Guimarães Rosa experimenta o sertão em um processo que chega a se tornar construção da linguagem verbal, no fotolivro Bisilliat experimenta a fotografia e o livro fotográfico como reconstrução de um sertão (com paisagens e personagens) cuja existência ocorre indissociada da materialidade da própria palavra constituída na obra literária.   

  

A João Guimarães Rosa (3. ed., 1979), de Maureen Bisilliat.

   

A investigação do sertão literário por Bisilliat dá origem a outro fotolivro-tradução: Sertões: luz e trevas, criado a partir da prosa de Euclides da Cunha. Se no fotolivro anterior as viagens a Minas Gerais e os ensaios fotográficos delas resultantes tiveram como precedente o contato da fotógrafa com a prosa e seu autor, no caso de Os Sertões (Cunha, 1902) a tradução inicia-se depois das imagens fotográficas já obtidas, feitas por Bisilliat entre 1967 e 1972 no nordeste brasileiro (Del Castillo, op. cit.). A artista apostou na experimentação da fotografia para alcançar equivalências fotográficas com uma literatura dedicada a criar e desvelar um sertão que, como ela mesma descreve, é um “mundo ambivalente, real e mítico, onde homem e natureza se confundem” (Bisilliat, 1982: 13). Para relacionar com os trechos retirados das três primeiras seções da obra fonte, Bisilliat refotografou parte de suas imagens, utilizando lentes para macroampliações, fazendo uso de folhas de contato e experimentando recursos como luz de tungstênio para obter coloração (Del Castillo, op. cit.). Como resultado, e a exemplo da obra que traduz, Sertões: luz e trevas ocorre no espaço fronteiriço entre a documentação de uma realidade social e a experimentação estética da linguagem por meio da qual se materializa.

        

Sertões: luz e trevas (3. ed., 2019), de Maureen Bisilliat.

        

O cão sem plumas, poema de João Cabral de Melo Neto (1950), traduz-se no fotolivro homônimo de Bisilliat (1984). O livro combina, em dípticos, versos do poema com imagens de crianças e mulheres pescadoras conhecidas como “caranguejeiras”, na região de Livramento, na Paraíba. Parte de um ensaio realizado, inicialmente, para integrar uma reportagem da revista Realidade, as imagens fotográficas combinadas ao poema nesse fotolivro-tradução são, em sua maioria, em preto em branco, feitas de ângulos próximos do objeto de registro, como em uma tentativa de imersão nos personagens imersos na lama e na própria densidade objeto do poema4. Nas palavras da autora, trata-se de mais um exercício de tradução que visa alcançar “um traçado de equivalências, onde texto e imagem se justapõem, por consonância ou dissonância se agregam, e se encontram em equidistância de voo” (Bisilliat in Del Castillo, op. cit., 86).

    

O cão sem plumas (1984), de Maureen Bisilliat.

     

Além de fotolivros-tradução como os exemplos acima, que se referem à obra fonte apropriando-se de seus recortes, há os que traduzem trabalhos literários experimentando a transmutação de aspectos do signo verbal para a imagem fotográfica. Podemos descrevê-los como casos mais radicais de transposição, uma vez que traduzem a obras desenvolvidas em um sistema de signos distinto, usando seus próprios recursos semióticos. É o caso de Funes, de Lucas Eskinazi (2019), que, sem recorrer ao uso do texto verbal (à exceção do título), traduz para o fotolivro o conto “Funes, o memorioso”, de Borges (1942). Exemplo semelhante está em Ser tão gerais, de Alexandre de Guzanshe (2019). Baseado em Grande sertão: veredas, o fotolivro constrói-se por meio de uma sequência de imagens fotográficas resultantes de viagens feitas pelo autor ao sertão mineiro entre 2012 e 2018. Diferentemente da tradução feita por Bisilliat, o texto verbal presente na versão de Guzanshe restringe-se aos artigos apresentados como prefácio e posfácio.

     

Funes (2019), de Lucas Eskinazi.

    

Ser tão gerais (2019), de Alexandre de Guzanshe.

     

Fotolivros-tradução de autoras e conjuntos de obras

   

Tão vastas quanto as maneiras de traduzir são as escolhas do que traduzir. No que diz respeito aos fotolivros, além das relações diretas com trabalhos específicos – como vimos acima –, há criações que têm como objeto conjuntos de obra, estilo ou especificidades de artistas. Como fenômenos de transmidialidade, esses livros fotográficos funcionam como um tipo de investigação e elaboração criativa dos atributos formais, estéticos e discursivos que convencionalmente passam a ser identificados como característicos de determinada autora. É o caso de Bahia amada Amado: o amor à liberdade & a liberdade no amor, de Maureen Bisilliat (1996), que transmedia a obra de Jorge Amado e se refere, diretamente, a pelo menos 12 textos do escritor; e de Viagem pelo fantástico, de Boris Kossoy (2021 [1971]) que faz alusão ao realismo mágico, ao surrealismo e ao cinema noir.

Entre os fotolivros que traduzem características que particularizam determinada artista ou escritora, encontramos publicações como Nas trilhas do Rosa, de Fernando Granato e Walter Firmo (1996); Caminhando com Portinari, de Alan Nielsen (2012); Cada dia meu pensamento é diferente, de Tatiana Altberg (2013); Viagem à Bahia do cacau e Jorge ressignificando Amado, de Valdemir Cunha (2016, 2017); Sor Juana, de Sofia Brito (2018); Encontro com Liuba, de Claudia Jaguaribe (2019); e Quem sabia já morreu, de Ciça Carboni (2019).

Quando observamos a diversidade entre os fotolivros que traduzem Guimarães Rosa, nos atentamos também para a pluralidade de formas pelas quais a tradução pode atuar como processo criativo em livros fotográficos. No caso do exemplo alocado nesta seção, o que vemos são as experiências do autor pelo sertão mineiro, suas anotações e conjunto de obras (sobretudo Grande sertão: veredas, obviamente) atuando como fonte para Nas trilhas do Rosa (Granato e Firmo, 1996). As fotografias e textos que integram esse fotolivro documental resultam de viagens realizadas pelos autores por Minas Gerais, utilizando as cadernetas de Rosa como roteiro.

     

Nas trilhas do Rosa: uma viagem pelos caminhos de Grande Sertão: Veredas (1996),
de Walter Firmo e Fernando Granato.

   

Caminhando com Portinari (Nielsen, 2012) é um fotolivro que poderia figurar na primeira seção deste texto, uma vez que relaciona imagens fotográficas de Nielsen a trechos de poemas do artista traduzido. Entretanto, como sabemos, fotolivros não se adequam a rótulos ou se enquadram em categorias excludentes. A publicação de Nielsen, como a maioria dos livros fotográficos aqui descritos como tradução, numa análise mais detalhada poderia aderir-se a mais de uma seção ou modo de transposição/referência/alusão. O que ocorre é que, mais que traduzir os poemas de Portinari, o fotolivro de Nielsen desenvolve-se como uma investigação das origens criativas e formação do artista referenciado. Nesse exercício de tradução, os registros feitos por Nielsen da cidade natal de Portinari configuram-se como busca – na paisagem e personagens de Brodowski (SP) – pela origem das obras de Portinari. O fotolivro apresenta-se, assim, como um esforço de reversão do processo tradutório por meio do qual Portinari referenciava a si mesmo em suas próprias obras.

   

Caminhando com Portinari (2012), de Alan Nielsen.

  

O universo de Machado de Assis e o Rio de Janeiro por ele elaborado em sua literatura ocorrem como objeto no processo criativo do fotolivro Cada dia meu pensamento é diferente (Tatiana Altberg, 2013). A produção coletiva reúne fotografias de pinhole e microcontos produzidos por 15 integrantes do projeto Mão na Lata. Os processos por meio dos quais a vida e obra de Machado são traduzidas para o fotolivro se dão de maneiras diversas e relacionadas entre si. As transposições podem ser observadas tanto na concepção do fotolivro como um todo, quanto em suas partes relativamente isoladas. O título, por exemplo, remete à frase “Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa”, de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Já as imagens da primeira seção do livro destinam-se a traduzir as paisagens psicológicas criadas por Machado, além dos lugares mencionados nos contos do autor ou relacionados à sua vida. Nas seções seguintes, os textos fonte passam a funcionar como parâmetros para a abordagem imagética feita pelos fotógrafos de seus próprios cotidianos e espaços, assim por diante.

    

Cada dia meu pensamento é diferente (2013), de Tatiana Altberg.

    

Outros dois fotolivros que se dedicam a traduzir a relação entre autoras de literatura e seus contextos arquitetônicos (sejam de origem, criação ou inspiração) são Viagem à Bahia do cacau e Jorge ressignificando Amado (Cunha, 2016, 2017). O primeiro, como o nome sugere, transpõe para a fotografia e para o livro fotográfico a cultura do cacau no sul da Bahia, extensamente explorada por Jorge Amado em sua produção literária. O segundo livro dá continuidade ao primeiro, reunindo imagens excluídas na edição de Viagem à Bahia do cacau.

    

Viagem à Bahia do cacau (2016), de Valdemir Cunha.

  

Jorge ressignificando Amado (2017), de Valdemir Cunha.

      

A relação entre literatura e espaço também é explorada por Sofia Brito no zine dedicado à poeta e filósofa mexicana Sor Juana Inés de la Cruz. Em Sor Juana (Brito, 2018), a escritora e monja é referenciada por intermédio de imagens obtidas em uma rua mexicana cujo nome a homenageia. A publicação reúne fotografias feitas por Sofia Brito de objetos por ela dispostos na rua Sor Juana Inés de la Cruz, na Cidade do México.