Fotografia, 'tipos raciais' e antropologia

Neste ensaio proponho discorrer sobre um dos momentos em que a observação fotográfica e a científica se encontraram na criação do conceito moderno de raça como “relativo ao ser”, produzindo, assim, o sujeito racializado, subalternizado, global. Para tal, procurei prestar atenção à cena de formação/desenvolvimento/institucionalização da antropologia, como ciência do homem, e da fotografia como sua ferramenta científica, na segunda metade do século XIX, por meio da leitura e análise de alguns de seus textos fundadores. Selecionei aqueles cujos efeitos ainda localizo no nosso modo de existência social, global, atual. Gostaria também de frisar os dois modelos de fotografias antropológicas que estiveram bastante em voga à época: a fotografia de cenas e costumes, que se materializa na economia visual dos cartões postais; e a fotografia de tipos raciais, que se materializa nas cartes de visite, assunto de meu ensaio anterior1, ao qual darei continuidade. 

O tipo racial é uma construção teórica, abstrata, que procura transformar sujeitos em espécimes de raças humanas, as quais são hierarquizadas em função do seu “grau de consciência” intelectual e moral (função mental) em comparação ao homem: a identidade (ocidental-colonial-patriarcal) que se nega enquanto identidade e se enuncia como o ser humano soberano, racional e universal por excelência. O tipo racial, portanto, é uma imagem abstrata que se materializa numa visualidade: a fotografia de tipo racial. Esta, por sua vez, contribui para a naturalização do uso da violência contra os corpos racializados, sendo sua própria produção um ato de agressão. Contudo, antes de tratar da produção de tipos, gostaria de voltar a um assunto que comecei a abordar no meu primeiro ensaio2, sobre as coleções fotográficas: 

Reunir materiais, classificá-los, constituir arquivos e elaborar tipologias de raças humanas, esses procedimentos inspiraram tanto as coleções de fotografias, como as de crânios e esqueletos. Em ambos os casos, a forma como os dados foram recolhidos deveria ter pouco impacto na sua interpretação. No mais, a separação entre observadores-viajantes e antropólogos, o primeiro coletando fatos, o último trabalhando em materiais coletados por terceiros, é uma característica do trabalho científico ao longo do século XIX. (DIAS, 1994, t.n.) 

Pois bem, entre as décadas 1860 e 1880, colecionar álbuns de cartes de visite de tipos raciais era moda também entre os homens da ciência. A antropóloga Deborah Poole (2000) sustenta a tese de que a padronização estética das cartes de visite produziu um sistema de representação que tornava os objetos mais díspares em imagens equivalentes e, desta forma, passíveis de comparação. “[...] a aparência do índio adquiria significado como parte de um arquivo composto por todas as outras imagens equivalentes de tipos” (p.165). Segundo a antropóloga, a atração por tais imagens-objeto, para os colecionadores, residia em seu potencial de troca, comparação, acumulação, ordenamento e exposição em álbuns (id.).

 

Fig.1 – Página do álbum Antropologisch-etnologisches Album in Photographien (1874), de C. Dammann.3


A afirmativa de Susan Sontag (2014, p.14) de que “fotografar é apropriar-se da coisa fotografada” parece combinar perfeitamente tanto com os procedimentos antropológicos descritos pela historiadora Nélia Dias (1994), quanto com a formação das coleções de tipos como descrita por Poole (2000). Em ambas, posso ler a apropriação simbólica do corpo do outro que se materializa numa imagem fotográfica, comparada, arquivada e colecionada em álbuns. Louis Agassiz4 (1807–1873), naturalista, geólogo e zoólogo suíço, que esteve no Brasil liderando a Expedição Thayer (1865–1866), foi também um ávido colecionador. Suas cartes de visite mostravam tipos de diversas partes do mundo e serviam como “evidência” para suas proposições científicas sobre as origens das raças humanas:

Suas teorias catastrofistas e criacionistas basearam-se nos pressupostos do anatomista francês Georges Cuvier, que havia sido seu professor no início dos anos de 1830. O cientista francês atribuía a Deus a gênese e a destruição de cada espécie, se opondo à teoria de Lamarck5 para quem as espécies evoluíam em função do uso e desuso de características adquiridas. [...] Ao explorar o mundo de forma não dinâmica, o projeto de Cuvier sugeria uma meticulosa descrição empírica dos seres observados, já que cada espécie era única e os dados de uma não permitiam qualquer inferência sobre a estrutura da outra. (RATTES, 2010, p. 98 -99)

Segundo Cuvier, em The Animal Kingdom (1854), a História Natural deveria estudar as “condições de existência” que possibilitavam a vida dos corpos moventes (orgânicos). A socióloga e filósofa Denise Ferreira da Silva (2007) explica que, em Cuvier, “os corpos vivos, as coisas extensas e autoprodutoras da natureza” são escritos como “exteriorizações, tanto produtos quanto efeitos de uma ferramenta da razão universal, isto é, a vida” (p.103, t.n.). O animal mais perfeito seria o homem, o único com a mente racional totalmente desenvolvida, em seu maior grau.

Em suma, o corpo vivo que melhor expressa a vida não é o corpo humano, mas o corpo dos europeus pós-iluministas (“Caucasianos, brancos”), o corpo do homem, o homo historicus, aquele cujas funções mentais (“altamente desenvolvidas”) estão inscritas na sua configuração social, ou seja, a “civilização”. (SILVA, 2007, p.106, t.n.)

Cuvier (1854) menciona que as demais raças, a saber “Mongol”, ou amarelo, e “Etíope”, ou preto, não possuíam o mesmo grau de desenvolvimento que a “Caucasiana”, ou branca. A raça amarela teria ficado estacionada, sem progredir como civilização, apesar dos grandes impérios do passado; e raça negra teria se mantido bárbara, selvagem. Em resumo, para o naturalista, cada configuração social e humana do globo correspondia a um determinado grau civilizacional que seria reflexo da capacidade da mente racional daquela raça (sua condição de existência).

Influenciado pelo mestre, a concepção de Agassiz era essencialista, estática e empirista. Poligenista6, acreditava em vários “centros de criação” da humanidade. Cada um deles corresponderia a uma raça, e a partir daí ele desenvolve a ideia de “províncias zoológicas”: cada raça criada por Deus havia se desenvolvido em uma determinada região geográfica e climática, estando mais bem adaptada para aquele local. Para o naturalista, “a raça negra havia sido criada para colonizar as áreas tropicais, locais estes considerados impróprios para a sobrevivência e o trabalho do homem branco” (RATTES, 2010, p.124). Sendo assim, seu objetivo científico era provar a imutabilidade e fixidez das diferentes raças que comporiam a espécie Homo Sapiens (teoria criacionista). 

[...] Na Terra, existem diferentes raças de homens, habitando diferentes partes de sua superfície e possuindo diferentes características físicas; e este fato, tal como se apresenta, sem referência ao tempo de sua criação e à causa de sua aparência, requer uma investigação mais longa e nos pressiona a obrigação de determinar a hierarquia relativa entre essas raças, o valor relativo do caráter peculiar a cada uma delas, sob o ponto de vista científico. (AGASSIZ, 1850, p.142, t.n.)

 

Fig. 2 - August Stahl. Negra de costas, perfil e frente. Rio de Janeiro. 1865.
Peabody Museum of Archaeology and Ethnology, Harvard University.

 

A Expedição Thayer (1865–1866) tinha como um dos objetivos produzir uma coleção fotográfica de tipos raciais puros e mestiços7 no Brasil para posterior estudo e, com isso, provar que a teoria evolutiva do naturalista britânico Charles Darwin (1809 – 1882) era equivocada. Em The Origin of Species (1859), Darwin defendia que “o mundo natural e orgânico estava em permanente transformação, [...] os organismos vivos descendiam de um mesmo ancestral comum e [...] as espécies não eram fixas, mas se diversificavam a partir de mudanças graduais ao longo do tempo” (RATTES, 2010, p.101). A concepção darwinista sobre as origens das espécies não era teológica, mas dotada de historicidade; os organismos moventes, a natureza viva, estavam em contínua evolução ao longo do tempo, por meio de processos de variação e seleção natural. “Chamei essa preservação de diferenças e variações individuais favoráveis ​​e a destruição daquelas que são prejudiciais de Seleção Natural ou Sobrevivência do Mais Apto”8 (DARWIN, [1859] 1872, p.86, t.n.). Mas como ficam os seres humanos nesse relato?

Em The Descent of Man [...], Darwin argumenta que a singularidade do homem, não de toda a espécie humana, se expressa em suas configurações sociais - indústria, artes e configurações políticas - ou seja, "civilização", que agora se torna uma expressão do movimento de um nomos produtivo(SILVA, 2007, p.109, t.n.)

Darwin afirma que o homem evoluiu progressivamente de uma condição mais humilde até o mais alto grau de conhecimento, moralidade e religião. “Os atributos ‘morais e intelectuais’ do ‘homem civilizado’ testemunham sua vantagem adaptativa sobre todos os outros viventes, incluindo as ‘raças selvagens’” (SILVA, 2007, p.109, t.n.). Com isso, Darwin exclui o homem, raça Caucasiana, do relato da luta pela sobrevivência ou Seleção Natural: ele é sempre o vencedor. De modo que todas as outras raças humanas “são sempre já perdedoras na ‘luta pela existência’ contra as ‘raças de homens’ europeias, aquelas cujas configurações sociais atestam sua vantagem competitiva” (id, p.110, t.n.).

Em algum período futuro, não muito distante, medido por séculos, as raças humanas civilizadas quase certamente exterminarão, e substituirão, as raças selvagens em todo o mundo. Ao mesmo tempo, os símios antropomorfos [...] serão sem dúvida exterminados. A ruptura entre o homem e seus mais próximos aliados será mais ampla, pois irá intervir entre o homem em um estado mais civilizado, como podemos esperar, até mesmo do que o Caucasiano, e algum macaco tão baixo quanto um babuíno, em vez de como agora entre o negro ou Australiano e o gorila. (DARWIN, [1871] 1889, p.156, t.n.)

Darwin, portanto, não se aproxima tanto da ideia de que os traços físicos, biológicos, explicam as diferenças mentais (intelectuais e morais) entre as raças humanas. Ele se volta para a cultura e organização social dos seres humanos como prova da adaptabilidade humana, da Seleção Natural. E conclui: os “civilizados” vencerão a luta pela existência, por serem os mais capazes (moral e intelectualmente). Tal particularidade corresponde à civilização moderna europeia (SILVA, 2007, p.111).

Dois anos antes da publicação de The Descent of a Man (1871), o primo de Darwin, o antropólogo Francis Galton (1822–1911) publicou Hereditary Genius (1869), considerado o texto fundador da eugenia10, conceito que só nomeia em Inquiries Into Human Faculty and its Development11 (1883), e significa “bem nascido”. Em resumo, Galton (1869) defende que a capacidade mental humana é hereditária e não desenvolvida pela educação: “seria bastante praticável produzir uma raça de homens altamente dotados por casamentos judiciosos durante várias gerações consecutivas” (p.1, t.n.). E com isso, visando um equilíbrio ou aprimoramento genético, se proibiriam os casamentos inter-raciais ou com indivíduos “alcoólatras, epilépticos e alienados”. O propósito seria o controle dos nascimentos desejados, o controle do futuro, executando a seleção natural darwinista, exterminando as raças inferiores, selvagens, em função daqueles já determinados como vencedores, a raça Caucasiana. Pois bem, às teorias raciais sobre as diferenças (biológicas e culturais) entre seres humanos desenvolvidas a partir da teoria darwiniana de evolução das espécies dá se o nome de darwinismo social:

 [...] a espécie humana estava composta de diferentes raças que eram biologicamente distintas. Há de se destacar que apesar de um século de esforço científico para identificar estas diferenças, não se encontrou nenhuma desigualdade biológica definível entre os seres humanos. E mais: a ciência genética tem demonstrado claramente que todos os humanos compartilham o mesmo fundo genético. Não obstante, o darwinismo social (nome que se dava a esta aplicação da evolução aos humanos) prosperou durante um século como um meio para buscar explicações racionais para a irracionalidade dos preconceitos raciais. (MIRZOEFF, 2003, p.87, t.n.).

Até este momento, o que fiz foi ler, na companhia de alguns estudiosos contemporâneos, determinados textos que contribuíram para o desenvolvimento da incipiente ciência do homem, ou antropologia, na segunda metade do século XIX. Em resumo posso dizer que entre o biológico e o cultural, a essência e a variação, o estático e o movimento, a determinação espacial e autodesenvolvimento no tempo, o criacionismo e o historicismo – isto é, tomando como base os mais diversos argumentos, por vezes contraditórios entre si – seres humanos não-brancos foram inscritos, cientificamente, como racionalmente inferiores em relação aos considerados brancos.

[...] a ciência da vida passaria a conduzir um programa do conhecimento da existência humana, isto é, a antropologia do século XIX, ou a ciência do homem. Além dos traços externos usados no mapeamento da natureza conduzido pela História Natural, os autoproclamados cientistas do homem desenvolveram suas próprias ferramentas formais, isto é, ferramentas matemáticas como o índice facial para medir corpos humanos, esta que se tornaria a base da descrição e da classificação dos atributos mentais dos homens, tanto morais quanto intelectuais, em uma escala que supostamente registraria o grau de desenvolvimento cultural. (SILVA, 2019, p.41)
 

A fotografia foi uma dessas ferramentas antropológicas. Doravante, passo a observar os procedimentos fotográficos. Os antropólogos procuraram criar formas cada vez mais padronizadas para confecção de retratos de tipos, de modo que fosse possível realizar as comparações e medições físicas a partir das fotografias, com o maior grau de exatidão possível. Agassiz nos dá um exemplo ao escrever sobre a Expedição Thayer:

O método da história natural, a saber: comparar entre si indivíduos de distintos tipos, do mesmo modo que os naturalistas comparam espécimes de distintas espécies. [...] Em todos os retratos, os indivíduos selecionados aparecem em três posições específicas: de frente, de perfil e de costas. [...] Os negros, como os macacos de longos braços, são em geral mais esbeltos, com longas pernas e um corpo comparativamente curto, enquanto os índios têm pernas curtas, braços curtos e corpos largos, com troncos grossos [...]. (AGASSIZ, 1868, In: NARANJO, 2006, p.43, t.n.)
 

Vários outros antropólogos contribuíram para a padronização da representação fotográfica científica de tipos. Faço na sequência mais algumas menções. Para Thomas Henry Huxley (1869), deveriam ser feitas fotografias de corpo inteiro e da cabeça, ambos de frente e perfil. O retratado deveria estar nu (In: NARANJO, 2006, p.47). Para J. H. Lamprey (1869), o fundo fotográfico deveria ser uma superfície traçada com linhas verticais e horizontais (como um tabuleiro) em que cada quadrado tem uma medida exata. Tal procedimento facilitaria posteriormente a comparação das medidas corporais entre as imagens dos retratados (Ibid. p.50). Gustav Fritsch (1870) destaca que se devem evitar enfoques artísticos, efeitos de iluminação, aberrações da lente, e dar preferência a pontos de vista frontais (Ibid. p.54). Eugène Trutat (1884) afirma a importância da realização de retratos da cabeça e do corpo inteiro, vestimentas, armas, instrumentos e objetos (os indicadores culturais racializados):

A maioria dos caracteres distintivos das diferentes raças humanas se encontram principalmente na cabeça. Portanto, o antropólogo fotógrafo deverá, sobretudo, realizar retratos. Contudo, não se deve pensar que a representação do corpo inteiro não é útil. Pelo contrário, interessa determinar à proporção que existe entre os membros superiores e inferiores, e sabemos que as raças inferiores diferem totalmente nesse aspecto das demais. Finalmente, não vamos esquecer que esta parte da ciência do homem, a que se dá o nome de etnografia, encontra elementos de grande interesse no estudo dos trajes, armas, instrumentos, moradias..., coisas, todas elas, que tenham importância sobretudo nas raças que são ainda selvagens ou que estão quase próximas do estado primitivo. (TRUAT, 1884, In: NARANJO, 2006, p.86, t.n.)

Ainda sobre Truat, chama a atenção que o antropólogo diz ser “inútil tentar dar a mesma escala a todas as reproduções; bastará com anotar as medidas principais em um caderno” (ibid, p.91). Duas questões se apresentam nesse discurso. A primeira é que ele aponta as “falhas” do suposto realismo fotográfico, incapaz de proporcionar visualmente uma escala exata. A segunda é que essa prática de anotação das medidas do retratado como legenda da fotografia será posteriormente desenvolvida por Bertillon como retrato falado, na passagem do tipo racial para o tipo criminal na virada do século.


Figura 3 - Maurice Vidal Portman. Female Andamanese - Ilech,
girl of the Ta-Yeri tribe; age about six years
(1890). British Museum.12


Francis Galton (1878)13 propõe realizar retratos compostos, sobrepondo até 8 negativos para chegar ao rosto do tipo racial ideal. “À primeira vista, ninguém duvidaria de que correspondem a uma pessoa real e, contudo, como já disse, não é assim: se trata do retrato de um tipo, não de um indivíduo” (GALTON, 1878, In. NARANJO, 2006, p.65, t.n.). Questão retomada pelo antropólogo Arthur Batut (1887) que explica como fazer as sobreposições e conclui: “assim pois, obteremos uma fotografia na qual todos os acidentes que modificam o tipo da raça, na qual todas as notas que marcam a individualidade terão desaparecido e na qual apenas terão permanecido os caracteres misteriosos que formam a unidade da raça”(Ibid. p.94, t.n.). Para ele, a sobreposição de retratos seria um trabalho de análise e síntese fotográfica. O que considero interessante destacar nestas duas falas é a crítica implícita que fazem aos retratos de tipos quanto ao alcance de suas finalidades. Ainda que fotógrafos e antropólogos pensem estar fotografando tipos raciais ou, como tal, façam suas fotografias circularem nos meios científicos; a própria imagem fotográfica contradiz suas intenções.

Galton informa que o que se vê na fotografia é a imagem de um indivíduo e não um tipo. O sujeito retratado se impõem. O que o fotógrafo de fato documenta é a existência das pessoas que habitavam determinadas regiões do globo em um dado momento. Eles existiram. Mas o que a imagem fotográfica, da Figura 3 por exemplo, me possibilita ver, pensar e dizer, para além do fato de que aquela criança retratada existiu?

Posso dizer que vejo as escolhas estéticas-procedimentais que foram feitas. Com base nelas, e alicerçada pelas informações que apresentei anteriormente sobre o contexto de produção desse tipo de imagem, suponho as intenções de seu autor. Mas a fotografia não me mostra apenas as escolhas e intenções do fotógrafo: me mostra o retratado. A sua presença atesta que estou diante de um produto de um encontro entre seres humanos: uma fotografia. Que relações éticas regeram este encontro? Quais as aspirações, intenções do retratado? Talvez ir embora o mais rápido possível? Afinal, que importância teria essa foto para ele (o retratado)? Diferentemente das pretensões científicas do século XIX, não tenho como responder com “certeza” às questões formuladas acima. No limite do que entrou para os registros dos arquivos, o que posso é usar da capacidade política da imaginação para fabular respostas possíveis sobre esse encontro do passado, cujo produto se mantém até o meu presente.

Neste ensaio optei por mostrar três imagens fotográficas, a primeira realizada na África do Sul, a segunda no Brasil e a terceira na Índia. Três regiões distintas do globo, porém vinculadas pelo mesmo procedimento científico/fotográfico, colonizador e globalizante, de produção de seres humanos racializados. Este ensaio é a resposta que, por hora, consigo encontrar para as questões que a fotografia da Figura 3, a primeira que vi, há alguns anos, acionaram em mim.


Marina Feldhues
Artista visual, fotógrafa e pesquisadora do PPGCOM-UFPE.



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NOTAS

1. Disponível em: https://www.livrosdefotografia.org/artigos/18187/visualidade-e-poder-as-cartes-de-visite-e-os-tipos-raciais

2. Disponível em: https://www.livrosdefotografia.org/artigos/10484/fotografia-colecao-e-colonizacao

3. Disponível em: https://digitalcollections.nypl.org/items/fd9cb550-2288-0132-bcc0-58d385a7bbd0

4. A coleção de cartes de visite de Agassiz encontra-se no Peabody Museum of Archaeology and Ethonology da Universidade de Harvard.

5. Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet (1744–1829), conhecido por Chevalier de Lamarck, foi naturalista e autor de Philosophie Zoologique (1809), obra que apresenta sua teoria de evolução das espécies por meio dos usos e desusos de características adquiridas (Lei dos usos e desusos). Posteriormente tal concepção foi defendida por Darwin.

6. Uma outra concepção criacionista também esteve em voga ao longo do séc. XIX, a concepção monogenista: “congregou a maior parte dos pensadores que, conforme às escrituras bíblicas, acreditavam que a humanidade era uma. O homem, segundo essa versão, teria se originado de uma fonte comum, sendo os diferentes tipos humanos apenas um produto ‘da maior degeneração ou perfeição do Éden’ (Quatrefage, 1857 apud Stocking, 1968)” (SCHWARCZ, 2005).

7. Embora Agassiz não compartilhasse da concepção da infertilidade total dos mestiços, afirmava que miscigenação era prejudicial ao “estado natural das raças, já que é contrária à preservação das espécies no reino animal” (AGASSIZ, 1863, In: RATTES, 2010, p.127). “Para o cientista, a população híbrida era ‘fraca’, ‘degenerada’ e com tendência a infertilidade, sendo assim, necessária, do ponto de vista fisiológico e político, a criação de barreiras com o objetivo de impedir o cruzamento das raças e o aumento do número de mestiços” (RATTES, 2010, p.128). Noutras palavras, ele era defensor da segregação racial. Rattes (2010, p.127) ainda menciona como as teorias de Agassiz influenciaram a política inter-racial do Estados Unidos.

8. Segundo Schwarcz (2005), rapidamente o modelo evolucionista de Darwin se tornou o novo paradigma científico da época. Hofstadter (1975, p.3) afirma que o modelo impactou as formas de “pensar e crer”, fornecendo uma nova forma de se relacionar com a natureza e “aplicado a várias disciplinas sociais – antropologia, sociologia, história, teoria política e economia -, formou uma geração social-darwinista”.

9. “Nomos produtivo: a concepção da razão que descreve a mesma enquanto produtora ou controladora do universo” (SILVA, 2007, p.xvi, t.n.).

10. No Brasil, no início do séc. XX, foi fundado o Movimento Eugênico Brasileiro que realizou um grande número de publicações sobre o tema, abordando assuntos como: miscigenação, branqueamento da nação, regeneração racial, seleção de imigrantes brancos, controle da reprodução humana, entre outros.

11. Neste mesmo livro, Galton aborda questão dos retratos compostos de tipos raciais que menciono mais à frente.

12. Disponível em: http://www.luminous-lint.com/__phv_app.php?/i/49888:49889:49890:49891/

13. O Coposite Portraits, texto publicado originalmente em Journal Anthropological Institue of Great Britain and Ireland, vol.8, 1878, 99. 132 -144, foi adaptado como capítulo para o livro Inquiries Into Human Faculty and its Development (1883).


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REFERÊNCIAS

AGASSIZ, Louis. The Diversity of Origin of the Human Races. In: Christian Examiner and Religious Miscellany (1844-1857): Jul. 1850, p. 110-145. Disponível em: https://collections.nlm.nih.gov/catalog/nlm:nlmuid-101157103-bk. Acesso em 29 de dezembro de 2020.

CUVIER, G. (1854). The Animal Kingdon Arranged after to its Organization. London: Wilson Fort, N. Longman e O. Rees. Disponível em: https://www.biodiversitylibrary.org/item/117542#page/12/mode/1up. Acesso em 29 de dezembro de 2020.

DARWIN, C. ([1859] 1872). On the Origins of Specieis. 6th Edition. Disponível em: http://ecologia.ib.usp.br/ffa/arquivos/abril/darwin.pdf. Acesso em 29 de dezembro de 2020.

DARWIN, C. ([1871] 1889). The Descent of a Man. London: J. Murray. Disponível em: http://darwin-online.org.uk/converted/pdf/1889_Descent_F969.pdf. Acesso em 29 de dezembro de 2020.

DIAS, N. (1994). Photographier et mesurer: les portraits anthropologiques. In: Romantisme, nº 84. Le primitif. pp. 37 - 49. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/roman_0048-8593_1994_num_24_84_5950. Acesso em 29 de dezembro de 2020.

GALTON, F. (1883). Inquiries Into Human Faculty and its Development. London: Mcmillan. Disponível em: https://galton.org/books/human-faculty/text/galton-1883-human-faculty-v4.pdf. Acesso em 29 de dezembro de 2020.

HOFSTADTER, R. (1975). Social darwinismo in American thought. Boston: Beacon Press.

MIRZOEFF, N. (2011). The right to look: a counterhistory of visuality. Durhan &London: Duke University Press.

MIRZOEFF, N. (2003). Una introdución a la cultura visual. Barcelona: Paidós Ibérica.

NARANJO, J. (2006). Fotografía, antropologia y colonialismo. Barcelona: Gustavo Gilli.

POOLE, D. (2000). Visión, raza y modernidade: una economia visual del mundo andino de imágenes. Lima: Sur Casa de Estudios del Socialismo.

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SCHWARCZ. L. (2005). O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil , 1870–1930. São Paulo: Companhia das Letras.

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SILVA, D. F. (2007). Toward a global idea of race. London; Minneapolis: University of Minesot Press. 

SILVA, D. F. (2001). Towards a Critique of the Socio-logos of Justice: The Analytics of Raciality and the Production of Universality. Social Identities, v. 7, nº 3, pp. 421 - 454. Disponível em: https://www.academia.edu/8409487. Acesso em 23 de dezembro de 2020.

  

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