50 anos de "Viagem pelo Fantástico", de Boris Kossoy

Viagem pelo fantástico (1971), de Boris Kossoy.


O Brasil dos anos de chumbo fazia-se valer impondo a ficção do progresso como estratégia para velar o regime de morte sobre o qual se sustentava. Narravam-se sonhos auspiciosos quando a realidade não se desvencilhava do pesadelo nem do delírio advindo da dor exaustiva. Nesse cenário de notícias ficcionadas e de reais fantasmas Boris Kossoy publicava a primeira edição de Viagem pelo Fantástico. Trata-se de uma obra que não carece de contextualização para que se compreenda sua importância como fotografia brasileira e como fotolivro, entretanto o marco celebrado em 2021, de 50 anos de sua publicação, nos permite também atentar para o quão revelador é esse livro fotográfico quando o consideramos também como um sintoma dos tempos em que foi publicado, embora esse não seja o foco específico deste artigo. As relações da obra com o seu contexto não foram compreendidas pela crítica na época de sua publicação. Nos dias atuais, entretanto, enquanto amargamos o convívio com descabido saudosismo daquela recente, triste e ainda não superada fase, conseguimos entender a dimensão de imagens como a de um maestro que rege túmulos, de uma mulher translúcida sobre um viaduto ou de um minotauro domesticado. 

Importante contribuição para o panorama mundial dos fotolivros1, Viagem pelo Fantástico permanece como uma obra contemporânea tanto pela sua capacidade de aderir-se ao contexto político e sociocultural do momento em que é acessada, quanto pela habilidade em contrariar paradigmas da representação fotográfica. Publicada pela primeira vez em 1971 pela Kosmos, a obra explora com radicalidade aspectos estéticos da fotografia e propõe desconstruções de princípios que fundamentam o estatuto do próprio meio fotográfico. A exemplo de ficções teatrais e cinematográficas, a maioria das fotografias que integra o livro é encenada. O livro confere materialidade e torna visíveis cenas e flagrantes imaginados pelo autor. Situações ordinárias são propostas de maneiras pouco usuais no tratamento dado por Kossoy a espaços e objetos do cotidiano.

 

Viagem pelo fantástico (1971), de Boris Kossoy.
Vídeo de Rafael Bosco Vieira.

  

Justaposição e narrativa fotográfica

 

Não é trivial a apropriação que Kossoy faz do termo ‘conto’ para descrever suas sequências de imagens fotográficas. Mário de Andrade já dizia que “em verdade, sempre será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto".2 No caso das sequências fotográficas de Viagem pelo Fantástico, elas são assim consideradas por sugestão do fotógrafo, mas não só por isso. Trata-se de um processo criativo que está atrelado ao pensamento de Cortázar3, segundo o qual o conto estaria para a fotografia como o romance para o cinema. Ainda conforme o escritor, cuja obra é referência para a produção do fotolivro aqui observado, é comum ao fotógrafo e ao contista a 

necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que [...] não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto.4

No total, dez séries fotográficas integram a obra. São os contos A mulher e a cidade, Cenas num parque, Aeroporto, A estrada de ferro, A montanha, O viaduto, Cenas numa casa, Poder mágico, O maestro e Outros tempos… . Trata-se de sequências construídas no fotolivro de maneira episódica. Nesse processo criativo em que a fotografia é constrangida a atuar como fragmento de montagem, as justaposições fotográficas de Kossoy funcionam de maneira muito semelhante ao conto literário descrito por Bosi5 como “ora quase-documento folclórico, ora quase-crônica da vida urbana, ora quase-drama do cotidiano burguês, ora quase-poema do imaginário às voltas". Formados, em sua maioria, por um pequeno número de dípticos, os contos fotográficos de Kossoy são sempre incisivos e constroem-se por meio da condensação de fragmentos. A sequencialidade característica do suporte é explorada pelo autor de modo a transformar imagens fotográficas, até então dissociadas, em componentes de uma mesma narrativa, o que permite que as imagens atuem umas sobre a interpretação das outras.

De maneira análoga à estruturação de um haicai, os contos fotográficos de Viagem pelo Fantástico desenvolvem-se na sucessão de instantes descontínuos relacionados por justaposição. E se o conto literário se aproxima da fotografia e do frame, ao fornecer ao leitor instantâneos representativos, os contos fotográficos de Kossoy caracterizam-se também por expandir o fotográfico em duração. Os instantâneos, flagrantes representativos, recortados no tempo e no espaço, justapõem-se de maneira a ampliar a estranheza já provocada pelas colisões formais e simbólicas que fundamentam cada imagem do livro.

 

Trechos do conto Aeroporto.
© Boris Kossoy. Todos os direitos reservados


Tomando como exemplo a sequência Aeroporto, é possível observar como um processo de montagem fundamentado em justaposições engendra a produção de sentido nos contos fotográficos de Viagem pelo Fantástico. Supondo que a série seja acessada conforme as convenções ocidentais de leitura, tem-se inicialmente o direcionamento do título que constrange antecipadamente a interpretação das fotografias que estão por vir. Em seguida os dípticos ocorrem cada um com um processo no qual as fotografias relacionadas atuam umas sobre as outras. Quando as páginas são viradas, eles são revelados sucessivamente até a conclusão do conto. Nesse processo não só se estabelece uma relação entre duas páginas e fotografias, como entre os dípticos, que mutuamente se constrangem em termos de construção narrativa. O casal vampiresco observado de longe por um grupo de pessoas. Passageiros em linha reta seguindo em direção a um avião. Pausa. O homem vampiro isolado visto de um ângulo que privilegia detalhes. Um salão de aeroporto abandonado. Por fim, a dança do casal no espaço deserto, rodeado por mesas e cadeiras amontoadas. Em 2021, as imagens6 suscitadas pelo conto são diversas e felizmente imprevisíveis. Podem remeter à dança dos vampiros na política brasileira, aos aeroportos tornados espaços fantasmagóricos face às restrições em função da pandemia, à situação do Brasil em relação ao restante do mundo, ou ainda aos devaneios de classes sociais que celebram o aprofundamento do abismo econômico entre miseráveis e milionários.

Apesar de as interpretações de um conto como Aeroporto serem imprevisíveis e atreladas a contextos, é interessante notar que elas, entretanto, não são aleatórias. Uma vez relacionadas e sequenciadas as fotografias atuam umas sobre as outras. Mesmo que produzidas e oriundas de registros diversos, sua disposição no livro impõe o desenvolvimento da narrativa, impõe a relação. Trata-se de um processo no qual as justaposições que se sucedem complementam, contradizem e reorientam as sínteses interpretativas obtidas por meio do contato com cada imagem fotográfica, díptico e série. O conto como um todo ocorre como uma imagem, como algo, uma sensação, uma ideia ou uma constatação que é obtida por meio de um processo que inclui não só as fotografias e o projeto gráfico do livro, como o momento em que o fotolivro é acessado e as experiências colaterais de quem se propõe percorrer a obra. 


Fotografia como testemunho do fantástico

 

As referências para Viagem pelo Fantástico, mais do que na fotografia, estão na literatura de mistério e ficção, no realismo fantástico e no cinema noir. Recursos e procedimentos literários, identificados em escritores como Edgar Allan Poe, Jorge Luis Borges, Bioy Casares e o já mencionado Julio Cortázar são transpostos para a fotografia e fundamentam o desenvolvimento das sequências fotográficas na obra. Como o título sugere, os contos de Kossoy são da ordem do fantástico, ocorrem como experiências de estranheza pautadas pelo estatuto de testemunho da fotografia. A imagem fotográfica atesta como factíveis cenas que se aproximam de elaborações neuróticas e se assemelham a pesadelos e alucinações. São flagrantes de alterações da regularidade, instauram-se entre o ordinário e o excepcional. O fantástico fotográfico constrói-se, como materialização do imaginário, nas justaposições que são propostas na medida em que o livro é manuseado, e em cada foto-fragmento. Kossoy atribui a espaços, objetos e personagens, sentidos inusitados, o que promove desconstruções de convenções e hábitos. No fotolivro, o fantástico se desenvolve como conflito7, como algo “fora do normal de uma realidade cotidiana. Na relação entre o primeiro plano e o fundo, uma dessas coisas estaria fora do lugar, [seria] algo que nos intriga. Eu procuro isso nas minhas imagens durante toda a minha carreira”, descreve Kossoy.8

O conto fotográfico de Viagem pelo Fantástico desenvolve-se, predominantemente, por meio do que Eisenstein9 descreve como “montagem intelectual”. A justaposição-conflito10 entre as imagens fotográficas relacionadas no livro ocorre como um processo produtor de sentido na construção das sequências, como em uma escrita figurativa. No âmbito das metáforas visuais construídas, o conflito ocorre, principalmente, de duas maneiras: por meio da montagem dentro da própria fotografia, quando são construídas relações pouco usuais entre as figuras que compõem essas imagens, como personagens, objetos e cenários; e por meio da montagem entre imagens fotográficas – nos dípticos e em toda a série que integra o conto. No segundo caso, ao serem constrangidas a atuar umas sobre a interpretação das outras, as fotografias passam a compor narrativas que transitam entre o factual e o imaginado, gerando surpresa, inquietação e dúvida no leitor-observador. Unidades distintas (fotografias clicadas em contextos diversos) são justapostas em função de uma montagem que ocorre como articulação e exposição do pensamento. 

O fotolivro propõe distorções dos aspectos simbólicos, normativos, da fotografia para criar uma realidade que é própria da obra. Nesse processo, o fotógrafo não nega a função indexical11 da imagem, mas explora intensamente esse aspecto fotográfico até conferir-lhe novo atributo, o de testemunho da materialização e/ou ocorrência do imaginável. Interessado nos conflitos que envolvem o meio fotográfico também como construto cultural e teórico, o autor experimenta o funcionamento da imagem fotográfica como documento da ficção. 

 

Trecho do conto Outros tempos.
© Boris Kossoy. Todos os direitos reservados.

 

Viagem pelo Fantástico evidencia as rupturas do ilusório vínculo entre fotografia e verdade. Voltada para o conflito da imagem fotográfica com a realidade da qual habitualmente tornara-se testemunho, a obra ocorre também como questionamento daquilo que Barthes12 chamou de “efeito do real”. No fotolivro de Kossoy, a fotografia separa realidade e aparência, torna-se testemunho do delírio, das possibilidades impensáveis, da incerteza, da inquietação. A imagem fotográfica passa a funcionar como signo da dúvida, como prova de uma realidade não objetiva, ainda que fundamentada em uma indexicalidade objetiva. No conto Outros tempos… a ocorrência de um arlequim, uma múmia e um carrinho de bebê à beira-mar exemplifica as justaposições que remetem a visões e delírios no livro. Kossoy não só estabelece um conflito entre personagens e cenários, entre ações e contextos, como os documenta por meio do registro fotográfico (como efeito de um evento). A montagem intelectual em Viagem pelo Fantástico baseia-se no caráter indexical da imagem fotográfica para refutar os aspectos simbólicos que regulam as maneiras como habitualmente interpretamos pessoas, objetos, ambientes e tudo o que nos rodeia. 

 

Trecho do conto O maestro.
© Boris Kossoy. Todos os direitos reservados.

 

Outro exemplo de conflito entre concepções simbólicas atuando como importante produtor de sentido no livro é o conto O maestro, composto por uma imagem fotográfica. Vestido com um fraque e tendo nas mãos uma batuta, o homem gesticula em frente a um conjunto de túmulos mal conservados, tal como se estivesse diante de uma orquestra. A imagem fotográfica ocorre como testemunho da ocorrência do impensável, do despropósito, ao mesmo tempo que questiona a finalidade habitual da fotografia. A inquietação e a surpresa que ocorrem na observação do maestro que rege sepulturas é exemplo do efeito do conflito que se estabelece quando convenções são justapostas. O que são a realidade e a verdade possíveis de comprovação pela captura fotográfica? O que define um maestro, uma orquestra ou um cemitério? Qual a função de um maestro que rege o silêncio em vez de relações entre intervalos de som? De quantas maneiras, ainda, essa imagem pode ocorrer como metáfora dos dias atuais, 50 anos após ser produzida? 

Em Viagem pelo Fantástico, a fotografia frequentemente ocorre como um fenômeno de metalinguagem, ou metassemiótico13. O conflito entre os componentes da imagem fotográfica produz dúvida sobre a veracidade não só do acontecimento registrado, como do próprio mecanismo de registro e da natureza objetiva do meio. Em entrevistas diversas, Kossoy exprime seu constante interesse pelo conflito (principalmente simbólico) entre os elementos que integram suas fotografias. “É a convivência de situações aparentemente desconexas, que, com a quebra de um olhar monótono, cria uma nova verdade”, diz à Folha de São Paulo.14 É possível que em Viagem pelo Fantástico esteja, até agora, seu exercício mais radical desse propósito. Conforme Eisenstein15, as fotografias “tanto como reflexos, quanto pela maneira de suas combinações, [...] permitem qualquer grau de distorção – que pode ser tecnicamente inevitável ou deliberadamente calculada”. No fotolivro em questão, as distorções deliberadamente calculadas por Kossoy ocorrem por meio de constantes conflitos que tornam a própria imagem fotográfica um exercício de justaposição por “atonalidade”.16

A fotografia e os contos de Kossoy se dão no espaço fronteiriço entre distintas concepções de realidade. Calvino17 salienta que, já em sua gênese, o fantástico fundamentava-se na sugestão visual, dizia respeito à construção da “realidade daquilo que se vê: acreditar ou não acreditar nas aparições fantasmagóricas, perceber por trás da aparência cotidiana um outro mundo encantado ou infernal”. Se na literatura o fantástico é resultado da maestria na manipulação das palavras e das visões por elas criadas e suscitadas, na fotografia e nos contos fotográficos de Kossoy o fantástico resulta da maestria na manipulação do visível e da fotografia como registro de uma realidade que é produto da própria construção fotográfica. Se na concepção eisensteiniana, a montagem como criação consiste em processo de organização de imagens no sentimento e na mente de alguém, Viagem pelo Fantástico funciona como essa justaposição de contos fotográficos organizados na mente e no sentimento de quem lê-observa, propondo-lhe inquietações e ambivalências próprias do percurso por uma narrativa fantástica.

 

 

Ana Paula Vitorio
Pesquisadora pós-doc na University of the Free State,
doutora em Literatura pela PUC-Rio

 
 

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NOTAS

1. FERNÁNDEZ, Horacio. Fotolivros latino-americanos. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

2. ANDRADE, Mário de. Contos e contistas. O empalhador de passarinho. São Paulo: Martins Fonte, 1972 [1938], p. 5-8.

3. CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Trad. Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 151.

4. Ibidem, p. 151-152.

5. BOSI, Afredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 39.

6. “Imagem”, no sentido eisensteiniano, diz respeito ao conceito de uma obra. Ocorre como uma síntese criativa, envolvendo tanto quem produz quanto quem acessa o trabalho. 

7. Na concepção eisensteiniana, a noção de conflito, ou de “dominância de conflito”, subentende um jogo dialético de ações dominantes no qual a montagem funciona como justaposição de planos que atuam como atrações intelectuais engendradas para produzir sentidos.

8. KOSSOY, Boris. Entrevista concedida à TV UFSC. Florianópolis, 2 de março de 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wW8cgUuEBZE&t=442s>. Acesso em: 15 jan. 2018.

9. EISENSTEIN, Serguei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

10. Procedimento que fundamenta a montagem eisensteiniana, a justaposição-conflito pode ser descrita como relação baseada no choque, na irregularidade, em direção a uma síntese.

11. PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers. Cambridge: Harvard University Press, (1931-1958). 8 vls.

12. BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 156.

13. HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo, Perspectiva, 1975.

14. GIOIA, Mario. Kossoy passeia pelo fantástico em exposição. Folha de São Paulo. São Paulo, 26 jan. 2008. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac2601200801.htm?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996> Acesso em: 17 mar. 2016.

15. EISENSTEIN, Serguei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 15.

16. Ibidem.

17. Calvino, Italo. Contos fantásticos do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 6.

  

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ATUALIZAÇÃO
* Texto originalmente publicado em 19 de novembro de 2021
* Atualizado em 08 de março de 2023.

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