Fotô Editorial: entre fotolivros, livros-objeto, livros de artista, e-fotolivros, livros teóricos ...

Criada em outubro de 2016, a Fotô Editorial tem como objetivo a produção de fotolivros de autores brasileiros que amplifiquem a discussão acerca do estatuto da imagem no mundo contemporâneo. Fruto de uma parceria entre o curador e jornalista Eder Chiodetto, publisher da editora, a pesquisadora Fabiana Bruno e a artista visual Elaine Pessoa, a Fotô Editorial surgiu como um desdobramento natural das linhas de trabalhos desenvolvidas no âmbito dos Grupos de Estudos e Criação em Fotografia do Ateliê Fotô, fundado por Chiodetto em 2011, em São Paulo.

Num primeiro momento a editora tinha como foco principal a publicação dos ensaios fotográficos dos participantes dos grupos de estudos. Após meses acompanhando a gestação de ensaios nascidos a partir de amplas discussões conceituais, estéticas e ideológicas, cada participante do grupo que persistia no seu caminho autoral em determinado momento fechava um ciclo, com seu trabalho organizado. A edição final dos projetos, porém, carecia de formas para se materializar no mundo. Com o imenso decréscimo de editais de fomento para todas as áreas da cultura no Brasil a partir de 2013, a possibilidade de expor trabalhos artísticos e documentais sofreu um revés, se comparado com o ocorrido na cena fotográfica brasileira a partir de 2002, quando iniciativas do governo federal ampliaram as verbas do Ministério da Cultura para o setor, dinamizando os festivais de fotografia pelo país, bem como editais de apoio à criação, publicação e exposição. 

Aliado a esse fator econômico, era notável ao mesmo tempo uma nova realidade formal, gráfica, estética e de pensamento editorial, que passou a vigorar em escala global, acerca das publicações específicas de livros autorais de fotografia. O trabalho sistematizado e orgânico entre autor, editor e designer, voltado não mais para a publicação de retrospectivas de carreiras ou livros com caráter de portfólio (formatos que eram muito comuns no mercado editorial), mas sim para histórias monotemáticas, pequenos ensaios e séries. Suportes estes que atendiam em grande medida a necessidade de autores interessados em colocar seus projetos nos circuitos dos festivais de fotografia, muitos dos quais passaram a ter seletivas específicas para essas publicações.

Assim sendo, ficou muito claro que dentro desse panorama renovado e estimulante para as publicações impressas, muitos produtores de fotografia ensaística passaram a focar em finalizar seus projetos como um primoroso fotolivro, por vezes priorizando esse suporte a uma exposição em galeria. A possibilidade de o fotolivro se converter num veículo que trafega pelo mundo dos festivais em todos os continentes, propagando internacionalmente o trabalho de forma inédita na história da fotografia, passou a ser um investimento de energia e recursos mais interessante e produtivo que uma exposição, que necessita por vezes de recursos semelhantes mas tem contra ela a efemeridade e o pequeno alcance, dependendo da instituição que a abriga. É claro que publicação e exposição não concorrem entre si, pois se trata de experiências bastante distintas, mas num cenário de maior carência de verbas públicas ou mesmo privadas na realidade brasileira, os fotógrafos invariavelmente precisam ser muito estratégicos para organizar as ações de divulgação de sua produção.

A produção de fotolivros, por todas essas questões levantadas, atendia exatamente à demanda que tínhamos com a produção dos mais de 250 fotógrafos que já haviam frequentado os cursos do Ateliê Fotô desde 2011. Assim sendo, em 2016 inauguramos nossas edições com dois livros: Nervuras noturnos, de Alice Grou, e Nimbus, de Elaine Pessoa.

Essas duas publicações já traziam para a Fotô Editorial duas questões importantes, que foram amadurecendo nos primeiros cinco anos de vida da editora. Nervuras noturnos inaugurou a Coleção Ensaios Fotográficos, que tinha como objetivo a publicação de trabalhos de autores inéditos. Para tanto, desenvolvemos em parceria com a designer Milena Galli um formato fixo, equacionando o melhor custo-benefício na época, bem como o bom aproveitamento de papel e de entradas em máquina na gráfica. Nossa preocupação era possibilitar a publicação a custos menores, podendo assim dar acesso a uma gama maior de autores, não fazendo do orçamento um impeditivo. Seguiram-se depois mais três publicações da Coleção: Lugar onde o tempo sofre, de Marcelo Costa, Floema, de Sonia Dias, e Geografia dos sonhos, de Beth Barone.

 

Títulos da Coleção Ensaios Fotográficos,
publicados pela Fotô Editorial entre 2016 e 2018.

 

É importante salientar que esses quatro projetos foram desenvolvidos e editados por seus autores no contexto da participação deles nos Grupos de Estudos e Criação em Fotografia do Ateliê Fotô. As discussões em grupo foram fundamentais para a maturação dos ensaios e a criação dos parâmetros conceituais e estéticos que nortearam os projetos. 

Passada essa temporada, o conselho editorial da Fotô ficou ainda com uma questão: seria possível seguir com a ideia de equacionar o alto custo da impressão dos fotolivros, sem abrir mão da qualidade, mas oferecendo aos autores a possibilidade de criar um projeto gráfico que atendesse às demandas de cada ensaio no lugar de oferecer um formato fixo? Falaremos disso mais adiante.

Nimbus, de Elaine Pessoa, que inaugurou a editora junto com Nervuras noturnos, de Alice Grou, como dissemos, trazia uma questão que se tornou com o passar do tempo uma marca da Fotô e daquilo que também tem se consolidado mais fortemente no universo dos fotolivros: pensar cada projeto gráfico a partir das propostas poéticas, estéticas e conceituais de cada ensaio fotográfico. Eis o que torna cada livro da editora um objeto único. 

Nimbus foi o primeiro projeto da Fotô Editorial realizado em parceria com o designer e fotógrafo Fabio Messias, profissional que também participou por alguns anos dos grupos de estudos do Ateliê Fotô. Nesse projeto o desafio era criar um fotolivro que evidenciasse a pesquisa da artista Elaine Pessoa, que buscava um ponto de contato singular entre a fotografia e a gravura, duas das linguagens que ela pesquisou por algum tempo e que se conciliavam nas imagens de uma floresta que ora se apresenta densa e misteriosa, ora parece desaparecer envolta num nevoeiro.

 

Nimbus (2016), de Elaine Pessoa.

 

A tradução poética e gráfica dessa experimentação artística no objeto fotolivro se deu por meio do uso das dobras francesas, de uma determinada gramatura de papel e de uma granulometria no tratamento das imagens. Ao serem impressas na gráfica, as fotografias ganharam no verso das páginas uma versão rebaixada – um fantasma –, como se fosse a camada mais densa do nevoeiro que quase faz a floresta desaparecer diante de nós.

A percepção da potência desse efeito, que havia sido racionalmente pensado, findou por gerar uma reviravolta na edição, que por vezes adotou o verso na página como imagem principal, deixando as páginas com a frente impressa ocultas no interior das dobras. Num último ato, decidimos por deixar o texto de apresentação do projeto também encapsulado na dobra francesa, sugerindo assim que o leitor deveria, a seu critério, cortar algumas dobras para entrar nessa floresta sedutora e sinistra na medida do seu interesse. Por fim, a capa do livro recebeu uma imagem da autora impressa em serigrafia branca sobre papel branco. Se num primeiro momento a capa se apresenta ilegível, ou “legível” apenas pelo tato, tínhamos a consciência de que o tempo – a manipulação e o desgaste natural da matéria – se encarregaria de tingir a serigrafia, fazendo com que o desenho da fotografia se tornasse visível ao longo dos anos. Como se o nevoeiro fosse se dissipando ao longo do tempo.

O processo de criação de Nimbus nos leva a perceber como o processo de edição e de discussão sobre o projeto gráfico mais adequado para potencializar o trabalho da artista leva inevitavelmente a pensarmos um fotolivro como uma instância poética única. É preciso que a equipe de trabalho em torno do fotolivro entenda em profundidade a proposta da artista e a potência das imagens para que o projeto desde o início seja construído sobre bases sólidas que ao final potencializarão a obra e abrirão um leque potente de comunicação entre leitores, editores e artistas.

Sedimentada a ideia de que cada fotolivro deveria ser único em sua concepção, passamos a pensar também no tênue limite que os separam das categorias de livro-objeto e livro de artista. É da natureza profissional dos três sócios da Fotô Editorial o pensamento transversal entre disciplinas e saberes, seja na prática da universidade e na coordenação de grupos de estudos com Fabiana Bruno, na prática artística com Elaine Pessoa, ou na investigação entre fotografia, arte, educação e curadoria com Eder Chiodetto.

Esse tipo de pensamento que privilegia a transversalidade entre categorias aparentemente estanques nos levou também a tensionar os limites entre o fotolivro, o livro-objeto e o livro de artista. A partir daí surgiu o convite para que a artista Lucia Loeb Mindlin desenvolvesse dois projetos específicos para a Fotô Editorial: Vista-SP e Árvore, dois livros-objetos primos, nos quais a artista demonstra sua versatilidade em investigar o suporte livro tornado obra de arte. Cada um dos livros teve a edição enxuta de apenas 25 exemplares e ambos foram lançados com sucesso na SP Arte. Trata-se de obras de arte que encontram o seu suporte em forma de livros, ao mesmo tempo em que transcendem a forma, a navegação e o uso destes. Tais obras convocam a uma experiência perceptiva desvinculada das funções esperadas tanto de uma obra de arte tradicional quanto de um livro. 

 

Árvore (2018) e Vista-SP (2019), de Lucia Mindlin Loeb.

  

Na categoria do livro de artista também poderia ser de alguma forma incorporada às nossas experimentações editoriais a obra que editamos com a artista visual Ana Lucia Mariz, intitulada Herbário baldio, que foi realizada no ateliê da artista de forma 100% manual, da impressão ao acabamento, com ajuda de uma assistente.   

Com apenas 110 exemplares, Herbário baldio recorre aos primórdios da invenção da fotografia, uma vez que Mariz se inspira nos photogenic drawings do pioneiro William Henry Fox Talbot (1800-1877) e nas experimentações com cianotipia da botânica e fotógrafa Anna Atkins (1799–1871), para trazer à luz, sem o uso de câmera fotográfica, uma história de minúcias e resistências, decorrências do processo acelerado e desordenado de mutações de São Paulo ou, como diria o geógrafo Milton Santos, “a acumulação de tempos desiguais que permeia o espaço de uma cidade”. Além do volume com o ensaio, feito de forma singular, o livro traz também vestígios do processo de trabalho da artista, um mapa que situa historicamente o processo de ocupação da cidade de São Paulo e um encarte com textos. 

 

Herbário baldio (2019), de Ana Lucia Mariz.

 

Como a editora foi um desdobramento natural dos Grupos de Estudos e Criação em Fotografia do Ateliê Fotô, seguimos sempre com a intenção de aliar a discussão estética que permeia a fotografia contemporânea com a ampliação de repertório do pensamento teórico sobre o status da imagem no mundo de hoje. Vários são os autores citados, lidos e discutidos no âmbito dos grupos de estudos. Dentre esses se destaca a produção do filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman, do qual a Fotô, em 2018, lançou a obra então inédita Imagens-ocasiões, inaugurando a linha de livro teóricos que em breve será ampliada com obra A fotografia e o verme, do professor e pesquisador brasileiro Norval Baitello Júnior.

 

Imagens-ocasiões (2018), de Georges Didi-Huberman.

 

Imagens-ocasiões traz, como confissões generosas, o pensamento do de Didi-Huberman sobre as “apercebenças”, termo recriado em português para traduzir aperçues. Trata-se de uma fenomenologia dessas “lascas de imagens” do mundo, que aparecem sob os nossos olhos diante de um turbilhão de coisas vistas. Imagens “passantes”, que vinculam-se e desvinculam-se revestidas de tempo e memória. Fabiana Bruno, organizadora da publicação, comenta no prefácio:

O texto é quase uma dança, uma coreografia de movimentos, composta de 29 textos-fragmentos. Acompanhados de referências oriundas de suas leituras e pensamentos, os fragmentos são colocados em jogo, dispostos como num ‘tabuleiro de montagem’ sobre as coisas vistas de passagem. Desafios literários saborosos e fecundos ao pensamento filosófico sobre as imagens.
 

O livro possui também 21 fotografias de sete artistas participantes dos Grupos de Estudos e Criação do Ateliê Fotô – protagonizadoras de uma cumplicidade inusitada com o pensamento poético do autor.

Criadas as linhas de fotolivros de ensaios únicos e as linhas fronteiriças com os livros-objetos, livros de artistas e os livros teóricos, faltava ainda, no pensamento do conselho da editora, avançar no desenvolvimento de modelos de impressão que minimizassem os custos sem perda da qualidade do produto final. Após pesquisas no mercado resolvemos adquirir uma impressora de alta performance, ainda que compacta. A artista e também coordenadora editorial da Fotô, Elaine Pessoa, capitaneou essa nova etapa da editora investindo em cursos de capacitação voltados para impressão e encadernação. Foi dela também o primeiro fotolivro realizado 100% dentro da editora – exceto a impressão do silk screen da capa. Assim surgiu Los cerros. Com apenas 120 exemplares, as capas tornaram-se obras únicas feitas uma a uma pela artista.

 

Los Cerros (2020), de Elaine Pessoa.

 

De posse dessa impressora e de um maquinário que permite cortes e dobras precisos, a Fotô Editorial passou a contar com a possibilidade de pensar e executar ao lado dos autores projetos customizados para os quais todos os detalhes do acabamento podem ser vitalizados pelas mãos dos seus criadores. Em contrapartida, os projetos podem se tornar mais econômicos e exclusivos, como aconteceu com Formas fósseis, de Daniela Carbognin, ensaio gestado no âmbito do grupo de estudos do Ateliê Fotô, e que se tornou o segundo livro feito totalmente na editora. Com uma tiragem de 110 exemplares, possui uma capa-obra que pode ser emoldurada a critério do leitor.

Outra linha que inauguramos em 2020, durante a pandemia de Covid-19, foi a e-fotô, nossa versão digital de fotolivros de acesso gratuito. Desenvolvido em parceria com o designer Fabio Messias, esse modelo de publicação busca utilizar da melhor forma o potencial das telas de computadores, sem simular os livros impressos. Dessa forma, os e-fotô tornaram-se uma plataforma para que os editores da Fotô, os autores e os designers criem com grande liberdade possibilidades editoriais que visam potencializar os projetos fotográficos. Esse formato surgiu a partir do desejo de disponibilizar de forma gratuita o trabalho de artistas que muitas vezes não teriam a chance de serem publicados de forma impressa. Novamente a preocupação em viabilizar trabalhos artísticos sem o alto custo de uma impressão de qualidade nos levou para uma nova vertente. Como projetos pilotos lançamos os e-fotolivros Sólido, de Nino Cais, e Traslado, de Mariana Tassinari.

 

Sólido (2020), de Nino Cais.

 

Traslado (2020), de Mariana Tassinari.

 

A Fotô Editorial sente-se na responsabilidade de divulgar a obra de seus autores, e por conseguinte a produção fotográfica brasileira contemporânea, em escala global, por meio dos festivais que cada vez mais têm privilegiado a produção de fotolivros. Desde o surgimento da editora, em 2016, temos marcado posição nas principais seletivas nacionais e internacionais. Nos últimos dois anos começamos a colher frutos e a ter a qualidade de nossas publicações reconhecida em importantes eventos.

As obras Onde jaz meu céu estrelado, de Juliana Jacyntho, e Veredas mágicas, de Norma Vieira, ficaram respectivamente em primeiro e segundo lugares no concurso internacional de fotolivros do Internacional Festival of Photography PhotoVisa, em Krasnodar, na Rússia, em 2020. Logo em seguida, Onde jaz meu céu estrelado ficou entre os 25 melhores fotolivros do ano em pesquisa realizada pela Vogue Itália. Seguiram-se a esse importante prêmio a seleção de mais dois títulos entre os 16 melhores fotolivros do Belfast Photo Festival: Still life, de Lucas Lenci, e Livro tombo, de Fabiana Ruggiero. No PhotoEspaña 2021 novamente Still Life ficou entre as melhores publicações internacionais do ano, junto com o fotolivro Tempus fugit, de Ilan Kelson. 

 

Publicações da Fotô Editoral, premiadas em diversos festivais internacionais.

  

Com cinco anos de existência, completados em outubro de 2021, e com mais de 30 títulos publicados, a Fotô Editorial segue repensando o seu papel de propagadora da fotografia contemporânea brasileira, ao mesmo tempo reinventando formas de inserir e publicar o trabalho de autores ainda pouco conhecidos. Para a Fotô, a fotografia é matéria de fundamental importância para a reflexão sobre o papel da imagem na sociedade e seus desdobramentos como forma genuína de expressão.

 
 

Eder Chiodetto
Publisher, curador, jornalista e cofundador da Fotô Editorial.

Elaine Pessoa
Artista plástica e cofundadora do Fotô Editorial.

Fabiana Bruno
Pesquisadora do IFCH-Unicamp e cofundadora da Fotô Editorial.

  

 

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