Uma taxonomia particular e afetiva sobre os livros feitos ao sul

Sinto que para abrir este relato devo, primeiramente, me assumir como um produtor de imagens entusiasta dos livros de fotografia, mas não necessariamente um artista cuja produção tenha se traduzido prioritariamente na forma de publicações impressas. À parte da produção editorial junto ao coletivo Garapa, realizada entre 2008 e 2015, minhas pesquisas costumam tomar forma conforme o espaço que ocupam: projeções, instalações, performances visuais e sonoras. Talvez aí esteja uma das questões que tanto me travam a forja de uma publicação: que formato tem um livro? E qual o formato de um livro de imagens?

Dito isso, sinto também que devo assumir uma localidade como produtor de imagens residente no extremo sul do país, nascido quase na fronteira com o Uruguai, mas criado no raro cruzamento do eixo Rio-São Paulo-Porto Alegre. Essa ponte área particular, que define territorialidades, por vezes temporárias, agora me põe a olhar para um panorama tão bem quisto nos meios de comunicação do Sul ao somar às perguntas feitas anteriormente a folclórica: e como são os livros de fotografia gaúchos? 

Buenas, para não perder o ranço bairrista que vai do anedótico “RS melhor em tudo” ao suprassumo cringe de “o Sul é o meu país”, penso que os gauleses irredutíveis da fotografia sulista poderiam pleitear para si parte fundadora na história dos primeiros livros de imagem do Brasil. Sim, muito antes da fotografia chegar ao mito do Dom Pedrinho gente boa, interessado em arte e entusiasta dos daguerreótipos, o francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1859) já havia viajado todo o Brasil e chegado aos campos do extremo sul da América. Entre 1820 e 1821, duzentos anos atrás então, o naturalista cruzou todo o território gaúcho, empiricamente desenhando o traçado de um mapa da pampa ainda não nomeada, no que é, até os dias atuais, um dos primeiros e mais importantes relatos da paisagem natural e humana dessas terras descritos por um viajante europeu. Misturando suas observações científicas de botânico às confissões pessoais de diários, Viagem ao Rio Grande do Sul (publicado originalmente em 1887, pelo editor francês H. Herluison), traz imagens em forma de texto, paisagens a serem imaginadas, tal qual a fotografia nebulosa de Niépce de 1826, não com a qualidade especular que só os daguerreótipos trariam a partir de 1839, mas com suficiente espaço para a imaginação.

Tenho lido esse diário como parte do roteiro de um filme que eu deveria ter feito em 2020, replicando essa viagem, mas os planos foram postergados por motivos de “não se tem como replicar uma viagem durante uma pandemia”. Então me ponho, pelo puro exercício da retórica, aliado ao prazer da suposição, a imaginar se o diário de viagens teria de alguma forma impactado a forma de nos vermos como subtropicais e, por assim ser, de nos registrarmos e nos publicarmos dois séculos depois. 

Iniciando o mergulho nessa suposição forçada, apelo às evidências materiais para além de seus registros em prosa: as imagens possíveis de seus diários, a materialidade de suas coletas de campo. Sua coleção da flora local, por exemplo, foi transformada em grandes lâminas arquivadas no Museu Nacional de História Natural de Paris e hoje pode ser acessada de qualquer local, graças ao projeto franco-brasileiro Herbário Virtual A. de Saint-Hilaire. Já seu mapa de viagens, com o traçado original à mão, está no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS) e também oferece a comodidade do acesso online. São peças em que o conteúdo é valioso, claro, mas nas quais a forma, o desenho, a disposição de elementos e o equilíbrio formal despertaram minha atenção. Agradeço então ao naturalista francês por fornecer, a partir de seu requinte estético, um recorte para esse artigo: se há algo que atrai meu interesse em investigar, escrever e pensar sobre a produção de livros de fotografia no Rio Grande do Sul, é justamente sua vocação para a experimentação no desenho/formato conduzida por uma produção desenvolvida prioritariamente por artistas visuais que fazem uso da fotografia, mas que não são necessariamente fotógrafas ou fotógrafos.

 

Imagens dos cadernos de campo de Auguste de Saint-Hilaire.
FONTE: Herbário Virtual A. de Saint-Hilaire

 

Antes, porém, de chegar aos meus pares contemporâneos geracionais, faz-se necessário pensar no promissor e seminal grupo de artistas Nervo Óptico. Em abril de 1977, Carlos Asp, Carlos Pasquetti, Clóvis Dariano, Mara Alvares, Telmo Lanes e Vera Chaves Barcellos, como coletivo, lançaram o Nervo Óptico, descrito pelo grupo como "uma publicação aberta à divulgação de novas poéticas visuais". Cerca de mil exemplares foram impressos e distribuídos gratuitamente. Até 1978, outras 12 edições mensais seriam publicadas, apresentando geralmente o trabalho fotográfico de um artista do grupo ou convidado. Eram folhas impressas em duotone, o contrário do que se entendia na época como uma obra comercial no circuito das artes. Oriundos do Instituto de Artes da UFRGS, o grupo deixaria um enorme legado a esse fazer artístico, essencialmente periférico, afastado do grande centro e, também por isso, livremente experimental. Acredito que, mais potente do que tentar forçar uma ligação entre o grupo e Saint Hilaire, seria pensar no projeto acadêmico da arte - ou seja, o real serviço das missões francesas a partir de 1816, acompanhando a chegada da corte portuguesa ao Brasil - e perceber as reminiscências das questões trazidas pelo Nervo Óptico no próprio Instituto de Artes da UFRGS. Foi ali onde o professor Paulo Silveira escreveria, anos mais tarde, a sua A Página Violada (2001), uma publicação fundamental sobre os livros de artista, onde o autor aponta as características de tal produção, reiterando “que os limites envolvem questões do afeto expressadas através das propostas gráficas, plásticas ou de leitura”.


Capas dos 13 números da revista Nervo Óptico, publicados
entre 1977 e 1978. (FONTE: site Arquivo Abreviado).

 

Nervo Óptico, um olhar global na solidão local. Direção Hopi Chapman e Karine Emerich (2018).
(FONTE: Fundação Vera Chaves Barcellos Viamão)

 

Para materializar esse recorte, então, entrecortado pelo afeto e propostas nas quais o projeto gráfico assume um papel central na edição, tomo como exemplo alguns casos emblemáticos em minha geração (a saber, os nascidos a partir de 1980), embora tantos outros pudessem ser tomados. Chego assim aos livros Escala de cor das coisas (2009), 拆 [Chai](2016) e Conhecidos de vista (2018), de Letícia Lampert; também alguns títulos bastante representativos das produções de editoras independentes, como O Vazio é um espelho (2015), de Carine Wallauer, gifs-do-eduardo (2015), de Eduardo Montelli e 5 Casas (2020), de Bruno Barreto, publicados pela editora Azulejo, além da coleção Fotodobras (2015, 2016), publicada pela Beira Movida Editorial.

Letícia Lampert abre o grupo. A artista, que é formada em Artes Visuais e Design e é mestra em Poéticas Visuais, traça bem o panorama deste recorte com a tríade escolhida. O primeiro deles, Escala de cor das coisas, publicado originalmente em 2009 e reeditado em 2014, tem a forma de um leque, fazendo um paralelo entre as escalas padrão Pantone e uma possível paleta de cores de coisas que vão de objetos a animais, passando pelo céu, pelo interior do quarto, por tudo que reflita luz em forma de cor: vermelho-bombeiro, ferrugem, palha, caramelo, mostarda, amarelo-manga, cor de burro quando foge, verde-folha, verde-limão. Aqui está a palavra-imagem: seria esse um rastro das imagens imaginadas por Saint-Hilaire? 

 

Escala de cor das coisas (2014), de Letícia Lampert.


Já em 拆 [chai], livro de artista publicado em 2016 como resultado de uma residência artística realizada em Xangai, Letícia encontra antigas áreas residenciais sendo demolidas para dar lugar a prédios cada vez maiores. A artista passa então a registrar traços do que ficou para trás, vestígios do que um dia foi habitação. A ruína de um passado que já se abandonou, mas onde ainda não se vê o “novo” anunciado. Isso soa extremamente familiar aos diários de Saint-Hilaire, no conflito entre um passado colonial cada dia mais questionado, enquanto a república sonhada ainda estava longe de se concretizar. Em 拆 [chai], tão importante quanto o recorte dos registros feitos in loco é a edição posterior para o livro, momento em que uma curadoria de imagens-páginas-dupla se monta, sem nenhum tipo de grampo ou presilha, sem refile pós-dobra, tudo para que as imagens possam ser realocadas, removidas, reposicionadas, assim como são as memórias desse recorte.

 

拆 [chai] (2016), de Letícia Lampert.

  

Fechando com Conhecidos de vista, projeto que foi base de seu mestrado em Poéticas Visuais, defendido em 2013 e materializado como livro em 2018. Aqui a artista faz uso do jogo de espelhos entre prédios com janelas próximas demais. Ver ou ser visto? Voyeur ou exibicionista? Como registra a própria Letícia1, são “vistas que não mostram a cidade e a paisagem, mas a vida do outro, muito de perto. Vizinhos que não se conhecem formalmente mas que, por esta proximidade forçada, podem tecer longas descrições sobre os hábitos mais banais uns dos outros.” Nesta publicação o formato eleito é o “leporello”, ou sanfona, criando um grande panorama de fachadas a serem desdobrados de um lado, enquanto em seu verso ficam os interiores dos apartamentos. Nesses três casos me encanta a multiplicidade de soluções dadas a um detalhe fundamental do que é essencialmente um livro, uma reunião de diversas páginas: como prender suas folhas? O parafuso do leque, a tira que envolve folhas soltas, dobras sem fim como no fole de uma sanfona. Cada decisão foi estudada e tomada a partir das características do projeto e de seu conteúdo imagético.

 

Conhecidos de vista (2018), de Letícia Lampert.

  

Questionada sobre essas escolhas, a artista nos abre seus processos e citações de formato:

No caso da Escala de cor, como queria fazer algo que simulasse ou citasse catálogos de cor, eu me baseei diretamente no formato do Pantone para fazer o projeto, então ele não é totalmente igual ao Pantone, mas é bastante inspirado nesse tipo de cartela. O formato vem da vontade de dialogar com esse outro tipo de publicação. Já com o Conhecidos de vista, eu tinha o conceito do projeto, mas não era uma citação direta a outra forma de publicação, e sim um modo de trazer algo mais abstrato. Eu queria que a página fosse como a parede que, se pensamos na cidade, funciona como uma membrana muito fina que separa dois tipos de ambientes de naturezas muito diferentes: o público e o privado. Então a decisão de ter um lado todo com imagens internas e outro com externas era para que o papel agisse como uma parede, manifestando esse conceito de dois lados distintos. Já no [chai], o design foi menos algo pensado de antemão, nesse sentido de ter um conceito a traduzir, ou citar, e acabou sendo mais uma experimentação gráfica mesmo. Por isso as páginas soltas, para que essa cidade em transformação fosse se revelando no processo de demolição de uma parede depois da outra, mostrando o que fica por trás, na próxima camada. Assim essa paisagem vai se mesclando, criando os jogos de imagens, mas sem que isso fosse estanque em uma encadernação fixa. Por isso, ao menos para mim, a Escala de cor das coisas e Conhecidos de vista têm mais uma “razão de ser” formal, enquanto no [chai] essa forma é um tanto de experimentação.

Passando da autoedição da artista/designer para o horizonte de uma editora independente, chegamos à Azulejo Arte Impressa, criada em 2015 pelos artistas e pesquisadores Amanda Teixeira e Pedro Cupertino. A editora, que nasceu da combinação do amor pelo formato do livro e pelas artes visuais, lançou mais de 20 livros seguindo a proposta de pensar cada uma de suas publicações como uma obra autônoma, em um processo de criação singular com cada artista. Dessas duas dezenas recorro aqui a três exemplos para pensar também diferenças de formato e escolhas em relação às suas razões como obra autônoma. 

 

O vazio é um espelho (2015), de Carine Wallauer.

 

O vazio é um espelho, segundo livro da artista visual e cineasta Carine Wallauer, é uma carta visual, um exercício de cinema sem narrativa dada. A textura do papel, o tom das imagens, tudo contribui para que se estabeleça algum tipo de suspensão: “É um livro de imagens. É um experimento. É um convite para tocar um rosto desconhecido impresso sobre papel e sentir as texturas objetivas e subjetivas das diferentes camadas do ‘eu’”, como ela diz na apresentação. A essa suspensão se soma a manualidade de intervenções com bordados e costuras, o que faz com que cada cópia lançada tenha sua materialidade única. Questionada sobre essas escolhas materiais e os caminhos que levam a essa experiência de suspender o meio físico, a artista revela: 

Em 2015, quando fiz a primeira edição do livro, passava por um momento em que pressentia já algumas coisas que me aconteceriam logo na sequência, já me era um período de silêncio, de introspecção, de um olhar para dentro, um desejo de me ver no outro, mas que ao mesmo tempo era quase como uma fuga: tentar se encontrar no outro por não se reconhecer em si mesma.

Carine também revela quanto do “ofício cinema” faz parte do processo do livro:

Sempre fui muito influenciada pelo cinema, ele faz parte de meu processo criativo. Em O vazio é um espelho, o cinema do Bergman estava muito presente, desde o nome, retirado de uma das falas do Sétimo Selo. Então, pensando na estrutura do livro, eu queria trazer de alguma forma isso tudo, o silêncio, a pausa, o espelho, o reflexo, a repetição, tudo isso que acontece quando uma pessoa se sente presa em uma espécie de cela pessoal, individual, por isso o livro trabalha essa obsessão através de repetições sutis, pautadas em leves variações, principalmente nas imagens feitas com uma lomokino (câmera que fotografa uma sequência de movimentos em um mesmo rolo, assim como nas câmeras analógicas de cinema, mas com a curta duração de um filme fotográfico). Quando penso em um livro, um fotolivro, eu penso muito nele como objeto, em algo com o qual as pessoas possam se conectar e não só passar de uma página para a outra, folhear, mas sim tocar, sentir fisicamente algo. Por isso a costura, a foto suspensa, a página que precisa ser rasgada para que se encontre uma foto escondida do lado de dentro.

Do sublime suspenso para uma quimera das telas: esse é o salto que proponho entre uma publicação e outra. No caso de gifs-do-eduardo, de Eduardo Montelli, é interessante pensar o impresso como desdobramento de uma pesquisa visual sobre um formato gráfico em movimento (Graphics Interchange Format). Uma das primeiras formas de publicação da pesquisa foi através de um perfil no Tumblr. Ali se desenhava a cartilha movente do que seria reordenado enquanto impresso estático. A produção de Eduardo através de gifs autorais encontra no livro uma possibilidade de sobrepor janelas, colagens, estabelecer outro fluxo de fruição. 

 

gifs-do-eduardo (2015), de Eduardo Montelli.


Nas palavras do próprio artista: 

Uma das primeiras edições que fiz no layout do Tumblr gifs-do-eduardo foi reduzir o espaço entre uma imagem e outra, de modo que os gifs ficassem aglomerados, intrincados. Eu estava interessado num efeito visual de acúmulo, bagunça, sobreposição excessiva. Quando pensei em fazer o livro, queria seguir essa experimentação formal, essa quebra da linearidade e da disposição em grid, tão comum em sites de fotografia. As páginas impressas são prints da tela do computador, no formato horizontal, montadas no livro em uma lógica de erro, pois os lados direito e esquerdo se desencontram, são atravessados uns pelos outros. 

Gosto de pensar nessa experiência como uma irradiação da tela, como algo que pulsa dentro da luz de LED que agora ilumina a tela onde esse texto é lido e vaza para as páginas impressas. E como em todo sistema, uma alimenta a outra, contamina. Esse processo de transmutar o meio eletrônico para o meio impresso é um campo de estudo muito interessante e que encontra ecos em projetos como o Library of the Printed Web, outro link do Tumblr. Assim se torna o jogo de manusear o livro, replicando o ato de passear pela bala de rolagem do Tumblr. 

Fechando o trio de Azulejos, o livro de Bruno Gularte Barreto é também a materialização no formato impresso de um projeto mais amplo. 5 casas é um mergulho autobiográfico denso, no qual o artista reúne resquícios materiais e imateriais de sua história, marcada pela morte precoce dos seus pais. 


5 casas (2021) de Bruno Gularte Barreto.

 

Iniciando como instalação expositiva no Centro de Fotografía de Montevideo (CdF) e circulando em festivais de cinema como longa-metragem documental, 5 casas chegou ao Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) no inverno de 2021, pouco antes do lançamento do livro2. A exposição trouxe ao público uma série de fotografias, fotoinstalações, objetos e vídeos que lidam com os conceitos de memória, autobiografia e autoficção. 

O livro 5 casas coroa essa série de formatos. Não sendo sobreposição de nenhum anterior, muito menos resumo, o livro se estabelece com um ritmo próprio através das cinco casas arquetípicas, que atuam como torres em um tabuleiro tanto afetivo quanto ontológico. Pensando sobre as semelhanças e diferenças que se destacam nesses formatos, o artista nos relata:

5 casas é livro, exposição e filme. Essas três produções trabalham com linguagens muito diferentes, o que gera narrativas muito diferentes, mas no meu caso lidando com o mesmo conjunto de histórias, um conjunto de memórias que há anos eu estou garimpando e recriando. No meu trabalho a memória funciona como uma ferramenta de autoficção, como algo vivo, em constante transformação e que muda a cada vez que a gente acessa e recorda. Então me parece muito natural, na verdade, que esse trabalho em específico tenha diferentes formas e meios de chegar às pessoas.
 

Quanto ao tempo contido no livro, Bruno nos diz:

Um livro tem essa ideia de perenidade, de algo que fica, que não tem a fugacidade de um filme, que depende de suas exibições, ou de uma exposição que fica aberta à visitação por um tempo determinado. Ao mesmo tempo, o livro também carrega uma ideia de pertencimento, ele é um objeto de posse, um livro se pode ter, ele é física e materialmente de quem o tem. Então essas minhas memórias pessoais, de infância, através do livro, podem fisicamente pertencer ao outro, isso para mim é, em algum nível, um pouco mágico. 
 

Na trinca da Azulejo, diferentemente do conceito que busquei para pensar na produção de Letícia Lampert quanto ao que une suas páginas, aqui parece que o cerne está no que as separa, ou seja, em qual outro suporte está também o impresso. Em 5 casas o livro é camada de composição junto a uma exposição e um longa-metragem; já os gifs-do-eduardo perenizam a ultra-velocidade da tela, enquanto O vazio é um espelho, de Carine, se fixa como a experiência especular de si mesmo, já que ali o livro é protagonista único de uma relação potencializada pela textura de bordados e costuras. 

Fecho o argumento com a coleção Fotodobras, da Beira Movida Editorial. Formado em sua maioria por fotógrafos de ofício, tanto em seu debut editorial de 2015 (Narrativas urbanas), quanto na sequência de 2016 (Deslocamentos), ambos não se dão no formato tradicional dos livros cânones de fotorreportagem ou mesmo do fotodocumentarismo, mas na pré-definição de um desenho, um modelo gráfico de dobra de papel capaz de transformar uma folha A3 em uma sequência de páginas A5, além de uma imagem pôster central A3. O formato, muito utilizado em fanzines fotográficos e outras publicações independentes, foi explorado pela Beira de forma a buscar soluções individuais a cada uma das cinco Fotodobras por edição, mesmo que todas partissem de um mesmo modelo de dobradura. 

 

Fotodobras (2015), organizado pela Beira Movida Editorial.

 

Fotodobras : deslocamentos (vol.2, 2016), organizado pela Beira Movida Editorial.

 

Acho emblemático que, em vez de propor a publicação de portfólios de reportagem ou cadernos como os Photopoche, o grupo primou pela escolha de uma solução gráfica, uma sistematização de registros pensada também em sua característica estética. Cristiano Sant'Anna, um dos membros fundadores da Beira, diz o seguinte:

[O Fotodobras] tem um pensamento sobre a materialidade e o livro como objeto. Não apenas a visualidade. A gente pensava sempre que o livro, mesmo o fotográfico, era antes de mais nada algo para ser tocado, pego nas mãos, antes de abrir. Foi um pouco isso que conduziu os diversos bonecos que fizemos para cada edição. Esse pensamento já estava no Arquipélago, meu primeiro livro. Durante os testes o livro mudou de um formato A4 pro conceito final de algo que se desdobra, sai de uma espécie de caixa e tem aquela rede na contracapa.
 

Esse pluralismo de escolhas formais, metodológicas e processuais dos casos aqui apresentados é também um espelho de como diferentes artistas, de disciplinas distintas, encaram o desafio de materializar uma pesquisa visual no formato livro. Como bem observa a autora de Conhecidos de vista, 拆 [chai] e Escala de cor das coisas, a razão de ser de um livro é mutável conforme seu autor, mas palatável através de suas múltiplas definições:

Para John Baldessari, [o livro é] uma forma de manter a arte acessível a todos. Para Lucy Lippard, um meio de ter voz e contornar o machismo das instituições. Para Sol LeWitt, uma maneira de levar ideias e ser melhor compreendido por um maior número de pessoas. Muitas são as razões que fazem os artistas buscarem no livro a forma de concretizar seus projetos.

Não sei se posso forçar o argumento e dizer que elos tão soltos e insubstanciais criam uma corrente capaz de atar essa produção aos relatos-imagem de Saint-Hilaire ou dos outros expedicionários e viajantes do século XIX. Possivelmente não. Mesmo que a produção territorial, por si só, prescinda de características determinantes como um gentílico visual, ainda assim me animo em perceber no panorama editorial gaúcho recente um gosto por pensar e fazer livros como objetos, que encontram suas razões de ser em projetos autônomos, não reduzidos à mera funcionalidade de catálogos, mas experimentados em sua plena potencialidade. Talvez experimentar seja uma boa forma de soltar essas amarras que travam a forja de um livro. Mais alguém gostaria de tentar?

 

 

Leo Caobelli
Artista e pesquisador visual, é pós-graduado em Fotografia pela FAAP,
mestre e doutorando em Poéticas Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS.

 
 

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NOTAS

1. Todas as falas de artistas aqui citadas foram retiradas de entrevistas concedidas ao autor do artigo no mês de julho de 2021.

2. É possível acessar uma visita guiada online da exposição através deste link.

    

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