Fotolivro, onde andas tu?

Vistas da livraria e editora Lovely House, localizada na Galeria Ouro Fino, em São Paulo.

 

A Lovely House é uma editora e casa de livros que foi criada em 2018 com a intenção de pesquisar e colocar à disposição em suas prateleiras publicações de editoras, principalmente as de pequeno porte, e selos ou autores independentes que publicam livros autorais de arte e fotografia, priorizando obras contemporâneas. Concebida e dirigida por Luciana Molisani e José Fujocka, que têm em suas trajetórias experiências de mais de duas décadas no mercado editorial, a Lovely House desde sua inauguração tem participado de diversas feiras de publicações, festivais de arte e fotografia tanto no Brasil como exterior, com a intenção de difundir a produção brasileira e também latina de publicações impressas independentes. Abriga também em seu espaço físico ou em canais digitais lançamentos e diálogos que possam ampliar a visibilidade e o entendimento do segmento editorial de arte. Em 2021 idealizou e coordenou a Imaginária – Festa do Fotolivro, primeiro festival brasileiro totalmente dedicado a estimular e difundir os livros contemporâneos de fotografia.

Os livros sempre tiveram certo protagonismo nas experiências vividas pela humanidade no percurso de sua história. Não é à toa que muitas vezes servem de inspiração para a criação cinematográfica. Inicialmente o livro era muito restrito a alguns nichos da sociedade, que tinham nesse objeto construído artesanalmente uma forma de adquirir informações e ao mesmo tempo imortalizar e passar à frente os conhecimentos adquiridos. Hoje, graças à evolução da indústria gráfica, podemos encontrar milhares de títulos dos mais variados assuntos, acessíveis praticamente a todas classes sociais. Mas se por um lado é positiva a produção em escala, por outro nos vemos obrigados a praticar uma curadoria árdua para filtrar o que realmente nos interessa. E isso vale para todos os setores do universo editorial.

A Lovely House surge com a vontade de navegar nos mares da publicação e buscar entender para onde sopram os ventos neste momento de transição tão radical pelo qual passa a humanidade. É fato que em todo o mundo as editoras de livros estão revisando seus formatos e buscando entender os novos hábitos, os novos interesses, o ambiente digital e também as novas formas de leitura, que ultrapassam as páginas impressas e se expandem para o ambiente audiovisual e multissensorial.

Até pouco tempo atrás, final dos anos 2010, fazia sentido imprimir catálogos, monografias e livros de arte em grande escala. O mercado de distribuição, bem estruturado, supria-se das grandes redes de livrarias com lojas espalhadas por boa parte do país. Podemos considerar também que essas livrarias eram um atrativo para o lazer e o turismo, misturando música, cinema, livros e muitas vezes um café para encontros com amigos. Esse modelo de negócio acabava atraindo diversos perfis de pessoas, que num passeio pelo espaço poderiam encontrar um livro de arte que não necessariamente estavam procurando, mas, por chamar-lhes a atenção, terminavam por ganhar um novo lar.

Outro ponto é que boa parte dessas livrarias não abria espaços para expor publicações autônomas de baixa escala, entre elas os fotolivros e os livros de artista, dada a maior burocracia nos trâmites administrativos para se regularizar um livro que não venha de uma editora e o fato de o próprio mercado livreiro ser bem alimentado, à época, por diversas publicações estrangeiras. Durante muitos anos, os livros importados foram o atrativo principal das prateleiras de arte, criando assim certa invisibilidade para o autor independente nacional, que, estando excluído desse ambiente, via-se obrigado a divulgar seu trabalho de forma alternativa.

Essa estrutura de mercado gerou condições para a emergência das feiras de publicações independentes, que começaram a ganhar força a partir de experiências como a Tijuana, que em 2009 ocupou os espaços da Galeria Vermelho em São Paulo com publicações de diversos formatos de editoras nacionais e estrangeiras. E também a Feira Plana, idealizada por Bia Bittencourt, que se inspirou na NY Art Book Fair, feira de publicações do mundo todo sediada no MoMA. A primeira Plana aconteceu no MIS-SP em 2013 e atraiu um público bastante expressivo, revelando o potencial dessas publicações e também a falta de espaços dedicados à sua divulgação e comercialização. Esse formato de feira contribuiu bastante para estimular os autores a investir em suas produções, muitas delas feitas sob demanda.

Um outro aspecto importante é que essas feiras contribuíram também para a expansão do público, atraindo pessoas de diversas idades e realidades econômicas, além de misturar num mesmo ambiente distintas pesquisas artísticas dentro do universo da arte impressa. Informalmente, esse mix de artistas/autores e suas obras possibilitou a um público em grande parte leigo nesse tipo de publicação dar um pequeno passo em direção à educação para a cultura visual. 

Só no ano de 2019 foram inscritas 85 feiras de publicações de todo o Brasil no Calendário de Feiras de Arte Impressa e Publicações Independentes, um grupo público do Facebook. Isso mostra o quanto esse mercado vem se expandindo em todo o país nos últimos anos e que deve ser retomado após o período de pandemia. Feiras de maior porte como a SP-Arte ou SP-Foto também abriram espaços mais generosos para o setor editorial.

O fotolivro, mesmo com uma presença menor nas grandes feiras de arte impressa realizadas no Brasil, vem ganhando mais visibilidade e sua produção está numa crescente. Feiras e festivais dedicados especificamente a esse formato de publicação já se fazem presentes em vários países há alguns anos. Atualmente é quase inimaginável pensar num festival de fotografia que não tenha uma parte dedicada aos fotolivros. Mas se por um lado sua importância e volume de produção estão numa curva crescente, já não podemos falar o mesmo de sua circulação e venda. Ainda há muito trabalho para trazer o equilíbrio entre esses dois pontos.

Aberta em 2013, a Livraria Madalena foi pioneira no Brasil e um marco importante na construção do mercado de fotolivros, trazendo uma curadoria impecável de diversos títulos nacionais e internacionais e colocando o Brasil na lista de países com melhores livrarias dedicadas ao fotolivro no mundo. A partir de sua inauguração os autores brasileiros também tiveram a oportunidade de conhecer de perto o que estava sendo produzido em outras partes do planeta, com acesso a publicações que ajudaram a amadurecer nossa produção local no que se refere à construção de um fotolivro. Com a atual realidade econômica brasileira e a desvalorização cambial, a importação de livros tornou-se impraticável para as livrarias de pequeno porte, dificultando bastante o acesso palpável ao que está sendo produzido em outros países. Isso, de certa forma, proporciona ao consumidor de fotolivros dar enfoque e acompanhar com mais atenção a produção nacional, o que pode ser bom para ajudar a amadurecer a cadeia produtiva local, uma vez que esse mercado vem crescendo e não se tem a concorrência por nível de sofisticação gráfica e editorial dos importados, que antes da atual desvalorização monetária chegavam por aqui com valores compatíveis aos livros nacionais.

Outro ponto importante a ser lembrado é a diminuição de recursos públicos disponíveis para apoiar a produção cultural. As leis de incentivo à cultura estão cada vez mais escassas. E apesar de terem sido criadas durante a pandemia, leis emergenciais para o setor cultural, como a Lei Aldir Blanc, acabam tendo um caráter mais amplo de distribuição de renda através de uma concorrência de projetos, do que propriamente ter o objetivo de financiar trabalhos e pesquisas que não necessariamente se enquadrem nas categorias desses editais.

A dificuldade em conseguir recursos e a falta de incentivos econômicos não permitem, na maioria das vezes, o investimento ideal para a produção de uma publicação de arte, o que abre portas para que o trabalho se destaque em criatividade, originalidade e no cuidado com a edição. É perceptível que isso vem acontecendo com a produção de vários autores independentes nos últimos anos. Muitas e muitos têm dedicado boa parte de seu tempo ao estudo e à elaboração de suas publicações, compreendendo que um livro não deveria ser colocado no mundo somente pelo impulso e pela vontade de se ter um trabalho publicado, mas que precisa ser entendido como um objeto que faça algum sentido para existir.

Nesse sentido os festivais de fotolivro em todo o mundo também são um gatilho para o crescimento e o amadurecimento dessas publicações, já que hoje existem vários festivais premiando maquetes de fotolivro e dando maior visibilidade e vida a essa produção autoral. No Brasil, o prêmio Foto em Pauta, de Tiradentes (MG), já está em sua sexta edição e tem os fotolivros vencedores publicados pela editora Tempo d’Imagem. Em 2021 aconteceu a primeira edição da Imaginária – Festa do Fotolivro, que premiou e publicou pela Lovely House Editora um fotolivro e um fotozine. Além disso, algumas editoras ou selos independentes têm tomado iniciativas para estimular esta produção, lançando editais ou convocatórias onde o autor selecionado tem sua obra publicada.

A falta de livrarias com espaços dedicados aos livros de fotografia no Brasil impede uma maior difusão e o escoamento da produção desse segmento editorial. Mesmo as livrarias tradicionais, que trazem como carro-chefe as publicações de literatura, têm encontrado dificuldade de sobrevivência principalmente em cidades do interior. Por conta dessa escassez muitos autores ou editoras construíram suas próprias lojas virtuais e comercializam as obras diretamente com seu público, sem o intermédio de uma distribuidora ou livraria. Esse modelo de negócio vem crescendo bastante e ganhando um público fiel, que está sempre acompanhando e adquirindo suas publicações assim que são lançadas. 

Entre algumas livrarias de nicho abertas nos últimos anos temos a recém-inaugurada livraria Portfólio em Curitiba, a Banca Vermelha, que abriu suas portas em 2020 e é especializada em publicações independentes feitas por mulheres, a Editora Origem, que desde 2016 tem a livraria virtual especializada em livros de fotografia de autores brasileiros, a Banca Curva e Banca Tatuí, que têm parte de seus acervos dedicados aos livros de fotografia.

Desde 2018, com apenas três anos de vida, a Lovely House está ainda engatinhando no mercado editorial e dedica boa parte do tempo se debruçando sobre possibilidades que possam apontar para uma trilha mais passível de ser percorrida. O mercado dos livros de fotografia mudou muito nos últimos anos, mas neste início da década de 2020, que é quando a Lovely começou a ter uma atuação mais presente no segmento, não só a produção e o consumo de livros mudaram, mas o mundo vem mudando radicalmente, seja por fatores na economia, na tecnologia, nas relações humanas ou nos hábitos de consumo. E todas essas mudanças afetam diretamente a criação, a produção artística e, consequentemente, seu mercado. Pensamos que hoje o público admirador do fotolivro não se impressiona somente com uma produção sofisticada em termos de impressão e acabamentos, ou ainda com um livro que apenas apresente o portfólio do artista. Os livros contemporâneos de fotografia suscitam sinceridade entre autor e público, não basta simplesmente a roupagem externa ou a disposição de belas imagens. Nesse sentido tem ocorrido algo importante no meio editorial: vários autores perceberam que podem desenvolver um trabalho significativo sem necessariamente ser obrigados a produzir um objeto extremamente oneroso e, por conta disso, mais títulos estão surgindo por valores mais acessíveis.

Mas existem espaços para todos. As produções mais sofisticadas e de custo mais elevado vão continuar existindo e tendo seu público, mas para a Lovely House é fundamental apoiar e difundir as publicações mais acessíveis, que podem possibilitar alguma democratização na educação para a cultura visual e ampliação da cadeia produtiva de fotolivros e fotozines. Bonito será quando essa rede possibilitar que mais carreiras de autores em situação de vulnerabilidade possam ser visíveis e sustentáveis por sua própria produção artística. Parece utopia, mas já presenciamos alguns artistas que tiveram suas carreiras alavancadas por conta de uma publicação.

Ao que tudo indica, a construção de narrativas visuais terá sua importância amplificada exponencialmente nos próximos anos e entrará no cotidiano de qualquer pessoa, seja ela um artista ou não. Atente-se ao fato, por exemplo, do cuidado e tempo despendido por qualquer pessoa para “editar” as imagens que vão para seu feed ou story nas redes sociais.

É certo que o nicho do livro de artista ou do fotolivro é infinitamente mais modesto que o dos quadrinhos, mas a Lovely House percebe um crescimento pelo colecionismo de fotozines e fotolivros por um público que não é formado somente por fotógrafos e autores, o que pode insinuar que este tipo de publicação tenha sua circulação ampliada brevemente. 

É importante desenvolver estratégias para que os fotolivros possam ser inseridos no âmbito educacional e que possibilite aos estudantes ter a chance de desenvolver a habilidade de fazer uma leitura imagética em paralelo ao desenvolvimento da linguagem verbal. Unir forças entre editores, autores, grupos de estudos, pesquisadores, festivais e feiras talvez seja uma das pontes para fortalecer e tornar mais consistente a produção artística deste nicho editorial que são os livros contemporâneos de fotografia.

A diversidade de curadoria é outro conceito caro à Lovely House. Colocar sob o mesmo teto publicações produzidas por autores iniciantes ao lado de edições especiais de artistas conceituados no nicho das artes proporciona um cruzamento de olhares com experiências distintas e cria uma relação simbiótica. É importante e enriquecedor para um autor ou colecionador de livros de arte saber o que está sendo produzido no universo dos zines, bem como é verdadeiro o contrário. Novas redes são formadas e o amadurecimento do trabalho de todos é expandido. Esse pensamento está próximo do que se vê nas curadorias de feiras de publicações independentes: cruzam-se experiências para amplificar o conhecimento de todas as partes.

 

Luciana Molisani
Designer, editora e cofundadora da Lovely House.

José Fujocka
Fotógrafo, especialista em edição e pós-produção de imagens e cofundador da Lovely House

 
 

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REFERÊNCIAS

Site da livraria: https://lovelyhouse.com.br

Instagram da livraria: @lovelyhouse.casadelivros

Página da editora na BDLF: https://livrosdefotografia.org/perfil/@id/5552

   

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