A ilusão especular: introdução à fotografia (1984), de Arlindo Machado (1949-2020), e Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia (1985), de Vilém Flusser (1920-1991), são importantes marcos teóricos sobre a fotografia no Brasil. Não há dúvidas de que a manutenção da influência dessas obras até os dias atuais se deve à profundidade e à densidade de suas abordagens. Porém, propomos notar que essa perenidade é também reforçada pela sinergia teórica entre esses clássicos. O objetivo deste texto é pontuar essa relação, propondo que as considerações desenvolvidas pelos autores avançam para além de uma teoria da fotografia, ao permitirem a possibilidade de se debater a própria ideia de teoria.
Em A ilusão especular, Machado busca trazer à consciência as contradições ideológicas inerentes à fotografia, que estariam obliteradas por sua cientificidade, isto é, blindadas por um discurso – para ele, equivocado – segundo o qual a ideologia, entendida como um sistema de representações imaginárias, estaria em contraposição à ciência e à teoria, já que estas seriam formas objetivas e isentas para a representação da realidade. A aparente condição especular da fotografia seria a camuflagem perfeita, pois
o que este efeito de “realidade” almeja, no mesmo momento em que sofistica o seu aparato técnico de representação, é [...] censurar aos olhos do receptor os mecanismos ideológicos dos quais esse efeito é fruto e máscara ao mesmo tempo. (MACHADO, 1984, p. 28)
Capas das duas edições de A ilusão especular, de Arlindo Machado. A primeira edição (editada em 1984 pela editora Brasiliense, com o apoio da Funarte) traz como subtítulo o termo "introdução à fotografia". Já a segunda edição, publicada pela Gustavo Gili em 2015, retoma o subtítulo "uma teoria da fotografia", estipulado originalmente pelo autor.
Ao longo da obra, Machado empreende uma desmontagem do código fotográfico, demonstrando, através de um perspicaz repertório fotoiconográfico, os vários elementos tecnoestéticos de sua constituição, que entregam a materialidade necessária para que seja possível perceber a fotografia como um signo determinado pela ciência, agora evidenciada como a expressão de uma ideologia dominante que já vinha sendo burilada, pelo menos desde o século XV, através da assunção da perspectiva artificialis. Para o autor, é preciso notar que isso torna a fotografia menos uma reflexão e mais um processo de refração, isto é, quebra-se a ideia da fotografia como espelho e a serviço de uma reprodução técnica fiel, abrindo-se as frestas necessárias para compreendê-la também como um processo de transfiguração.
Em certa medida, é uma desmontagem similar a que Flusser realizou em Filosofia da caixa preta. Contudo, diferentemente de Machado e sua aposta no mapeamento de uma produção fotográfica que pudesse evidenciar sua abordagem teórica, Flusser buscou a elaboração de conceitos para mapear as ações, as relações e os atores envolvidos na prática fotográfica. Isso permitiu, inclusive, considerá-la como técnica emblemática e fundadora de uma lógica existencial baseada numa sociedade engajada na produção e no consumo de informação.
Antes, porém, uma consideração. Filosofia da caixa preta foi lançada primeiramente em versão alemã, em 1983, sob o título Für eine Philosophie der Fotografie1. A razão para considerá-la uma contribuição teórica brasileira se deve não somente ao fato de Flusser ter se naturalizado, vivido e atuado intelectualmente no Brasil, mas também por ter sido o próprio filósofo o tradutor para a língua portuguesa, em 1985, momento em que aproveitou para aperfeiçoar e incrementar a argumentação desenvolvida no livro. É Arlindo Machado que reforça:
A versão em língua portuguesa (e não a alemã) é que deveria ser tomada como o texto definitivo da Filosofia [da caixa preta] e, por consequência, ela é que deveria estar sendo utilizada como base da tradução para outras línguas. (Machado, 2007, p. 42)
Capa da primeira edição em alemão da obra de Vilém Flusser
e de outras versões publicadas em português nos anos seguintes.
De início, tentemos sintetizar essa densa obra através de seu raciocínio central: a fotografia seria a primeira das imagens técnicas, isto é, uma nova categoria de imagem, agora produzida por aparelhos programados. Por essa razão, seu usuário estaria limitado às possibilidades criativas já inscritas nos aparelhos, tornando-se um funcionário a serviço dessa nova classe de objetos. Em outros termos, o fotógrafo não usa o aparelho, mas é usado por ele: uma provocação nuclear em seu texto, visando problematizar as questões da criatividade e liberdade num mundo cada vez mais tecnologicamente programado.
Aparelho, programa e funcionário: conceitos que estruturam uma caixa-preta, um sistema complexo e jamais penetrado totalmente.
Pelo domínio do input e do output, o fotógrafo domina o aparelho, mas por ignorância dos processos no interior da caixa, é por ele dominado. Tal amálgama de dominações – funcionário dominando aparelho que o domina – caracteriza todo funcionamento de aparelhos. (Flusser, 1985, p. 71)
Para o filósofo, é fundamental que se traga à consciência todo esse jogo de relações, objetivando o clareamento da caixa-preta. Esse mapeamento conceitual elaborado por Flusser é, em muitos aspectos, o que garante a atualidade de sua obra, visto que evidencia a intenção menos de construir uma teoria da fotografia e mais de semear uma reflexão sobre a vida programada na era dos aparelhos, que "se instalam por toda parte", e que podem se manifestar na forma de "gigantescos (como os administrativos)" ou "minúsculos (como os chips)" (Flusser, 1985, p. 25). Contudo, o que nos interessa notar é o fato de que a eleição da tecnologia fotográfica como expressão pioneira dos aparelhos, bem como seu enquadramento pelo conceito de imagem técnica, são posicionamentos que se avizinham às proposições de Machado em A ilusão especular, sobretudo no sentido de não somente reconhecer essa condição axiomática da presença da ciência na fotografia, mas igualmente avançar em sua problematização.
A imagem técnica é fruto de texto científico, Flusser nos diz. Uma natureza que lhe é intrínseca e que, como vimos a partir de Machado, é também a materialização de uma ideologia dominante, fazendo da fotografia algo que não pode ser entendido como um instrumento despido de valores, independentemente da objetividade instrumental pretendida. "Ontologicamente, as imagens tradicionais imaginam o mundo; as imagens técnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo" (Flusser, 1985, p. 19).
Ambos os autores apontam a fotografia como um ponto nodal na história da ciência, visto que a sua tecnologia reúne conhecimentos advindos de diversas áreas, organizando-os e sedimentado-os como um modelo de percepção e mapeamento da realidade. Dessa forma, as empreitadas de Machado e Flusser são teorias da fotografia que nos impelem a supor uma equivalência entre o ato de fotografar e o ato de teorizar.
Vejamos as implicações dessa dedução a partir de “Criação científica e artística” (1998), um pequeno e intenso texto de Flusser referente a uma conferência do filósofo na Maison de la Culture, em Chalon-sur-Saône (vale destacar, mesma cidade dos primeiros experimentos fotográficos de Nicéphore Niépce). Nessa conferência, realizada em 1982 (ainda antes do lançamento de Filosofia da caixa preta), Flusser propõe observar que a ciência moderna tem início a partir da reformulação do conceito "teoria". Aludindo à etimologia do termo – que nos remete ao grego (aqui transliterado) theoria, passível de ser traduzido como "contemplação" –, o autor afirma que "teoria" deixa de ser "a visão de formas dadas, imutáveis" para tornar-se a "criação de formas feitas" (Flusser, 1998, p. 171). Ou seja, teorizar passa a ser a construção de "modelos", o que sempre exigirá uma técnica. Para o autor, a sobrevalorização da dialética ciência-técnica, em prol da construção de conhecimento objetivo, favoreceria a instalação de uma sociedade tecnocrata, em que a arte não teria valor epistemológico e não participaria dos processos envolvidos no dito progresso científico. Uma configuração alarmante, a ser combatida pelo rompimento das barreiras entre ciência e arte, tendo em vista que ambas são frutos de uma mesma lógica criativa: "toda criação científica é 'obra de arte', toda criação artística é 'articulação de conhecimento'" (Flusser, 1998, p. 175).
É certo que a fotografia se encaixa perfeitamente na roupagem de uma técnica moderna, mas seu modelo produzido é uma nova aparência, condição que a torna mais aberta à pluralidade semântica e que, por isso, produz uma espécie de ricochete: ainda que se possa considerá-la uma imagem constituída tecnicamente pela expressão do texto científico ali embutido, ela é também uma produção imaginativa, o que a torna produtora de realidades. Afinal, como nos diz Machado, "a fotografia não pode ser o registro puro e simples de uma imanência do objeto", uma vez que, para o autor, "nós seríamos incapazes de registrar uma realidade se não pudéssemos ao mesmo tempo criá-la, destruí-la, deformá-la, modificá-la" (Machado, 1984, p. 40). Ou seja, as mesmas limitações, deformações e interpretações denunciadas pela desmontagem do código fotográfico empreendida em A ilusão especular, que evidenciam os caminhos para minar a ingenuidade da crença em uma reprodução técnica fidedigna e isenta, são também a evidenciação das aberturas para a sua apropriação em sentido inverso. A fotografia se mostra como um instrumento teórico que vibra intensamente entre a comprovação e a provocação.
É como se tomássemos os postulados de Thomas Kuhn a respeito da dialética entre história e ciência, apresentada em seu clássico A estrutura das revoluções científicas (2018), e propuséssemos a fotografia tanto como a confirmação de um paradigma – o que a viabiliza como instrumento a serviço da produção de uma ciência normal – como também uma anomalia, isto é, um fenômeno que coloca em crise esse mesmo paradigma. Assim, embora a técnica fotográfica seja utilizada largamente para apoiar diversos campos de pesquisa, consolidando-se como importante documento iconográfico para a construção do conhecimento em muitas disciplinas das ciências exatas, biológicas e humanas, seu uso implica um exercício de "teoria contemplativa", capaz de promover esse confronto com uma teoria da "fabricação de modelos". E mais: se observarmos que a base da ciência moderna pode ser definida pelos fundamentos do método cartesiano – dividir o mundo ao máximo para melhor compreender as relações que ali se dão –, a fotografia seria uma espécie de ponto de inversão nessa trajetória, por ser uma técnica moderna que não decompõe ou fragmenta, pelo contrário, está a serviço de processos de construção de novas realidades imaginadas, favorecendo a conscientização daquilo que Flusser denominou como a "ligação subterrânea que sempre tem unido ciência e arte” (1998, p. 175).
Não à toa, portanto, muitas das teorias da fotografia foram construídas sob um tom ensaístico, uma estratégia de escritura mais aberta e livre, que também pode ser entendida como um exercício de aproximação entre arte e ciência. É célebre, por exemplo, a maneira pela qual Roland Barthes abordou a fotografia em seu livro A câmara clara (1984), adotando uma metodologia do "eu" como princípio heurístico. Guiado pelos afetos das lembranças de sua mãe, cuja morte havia ocorrido recentemente, Barthes construiu um texto intimista, livre de determinismos científicos, constituindo uma referência teórica que se mantém ainda bastante influente no meio acadêmico. A eficiência dessa forma de abordagem também é comprovada a partir da obra de Walter Benjamin, cuja postura ensaística, presente em sua extensa produção, pode ser verificada nos clássicos textos “A pequena história da fotografia” e “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”,2 desenvolvidos próximo ao centenário da prática e cristalizados como referências absolutas para se pensar sobre temas que permanecem relevantes em nossos tempos.
De certa maneira, essa observação reforça a importância de A Ilusão especular e Filosofia da caixa preta, que se mostram como teorias construídas em percurso distinto, justamente por adotarem posturas mais contundentes neste confronto com a inevitabilidade de um rigor científico na própria constituição da fotografia. Ao desenvolver essa dimensão teórica intrínseca e tratá-la como um verdadeiro axioma, seus textos parecem se distanciar das abordagens mais ensaísticas. Vejamos: ainda que Flusser classifique sua obra como um "ensaio", tal como o subtítulo indica, não há como ignorar o fato de que a estrutura proposta em seu texto – que ainda traz um glossário com as definições dos termos utilizados – evidencia uma sistematização e organização conceituais metodologicamente estruturadas, que não correspondem exatamente ao tipo de composição mais errático que normalmente é atribuído ao ensaio. O mesmo vale para o percurso teórico de A ilusão especular, que em sua recente primeira reedição, publicada em 2015, assumiu o subtítulo "uma teoria da fotografia”.
Por fim, reforçando a sinergia entre os autores, é importante lembrar que Arlindo Machado sempre deixou claro como o conceito de imagem técnica foi influente em muitos de seus escritos, demonstrando eloquência e grande habilidade em suas mobilizações teóricas, o que contribuiu enormemente para que o pensamento de Vilém Flusser fosse divulgado ao longo das últimas décadas3. Flusser, por sua vez, tendo morrido em 1991, não pôde acompanhar a construção e ascensão de toda a valiosa obra de Arlindo Machado para os estudos da imagem nas artes e na comunicação. A ilusão especular, no entanto, era um dos livros presentes em sua seleta biblioteca móvel – a chamada "biblioteca de viagem", conforme revelou sua esposa, Edith Flusser4. Uma pista bastante expressiva para supormos também uma recíproca admiração. Fatos que reforçam a sintonia desses autores em produzir potentes e longevos amparos teóricos para os estudos sobre a fotografia.
Wagner Souza e Silva
Professor e pesquisador da Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo (ECA/USP).
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NOTAS
1. Para uma filosofia da fotografia (tradução nossa).
2. Cf. Benjamin, 1994.
3. Cf. Almeida, 2021.
4. Cf. Flusser, 2015, p. 371.
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REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Fernanda Albuquerque de. Arte e mídia: relações entre Arlindo Machado e Vilém Flusser. Significação, São Paulo, v. 48, n. 56, p. 95-112, jan./jun. 2021.
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
FLUSSER, Vilém. Comunicologia: reflexões sobre o futuro. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
FLUSSER, Vilém. Criação científica e artística. In: ______. Ficções Filosóficas. São Paulo: Edusp, 1998. p. 171-176.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2018.
MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo: Gustavo Gilli, 2015.
MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: uma introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense, 1984.
MACHADO, Arlindo. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.