Algumas características de um livro de fotografia que mais me atraem são a capacidade de lhe sugar, lhe deixar intrigado e ficar insatisfeito porque o livro chegou ao fim. Essas características são quase inexistentes em livros nos quais o autor se sente atraído por “mostrar” a sua produção em contraponto com o que realmente interessa: contar algo, narrar aquilo que ele sentiu e vivenciou no lugar, no acontecimento. O livro vira um portfólio chato e interminável.
O livro Imagens fiéis (Cosac Naify, 2003), de José Bassit (1957), se encaixa na parte boa do parágrafo acima. Com quase duas décadas de publicado, o livro trilha o documental clássico e vai na raiz da religiosidade brasileira. Tema mais do que batido. Porém, as imagens fiéis de Bassit saem do papel, da tinta. É uma potência de sentimentos, sensações, lamentos, tristezas sem fim.
A apresentação do livro conta com dois belos textos, um do escritor Rodrigo Lacerda e outro do sociólogo José de Souza Martins, que resume o que penso em dois momentos: “há nessa obra uma sucessão de pungências, de emoções fundas” e “a base documental é evidente, mas há uma superação evidente desse patamar inicial”.
Abaixo, uma rápida conversa com José Bassit, que até hoje documenta as festas e romarias pelo Brasil com dedicação e seriedade.
Alexandre Belém
Jornalista, editor e co-fundador da editora Olhavê.
Imagens fiéis (2003), de José Bassit.
[Alexandre Belém] Vamos começar pelo final: como você vê a importância do seu livro Imagens fiéis, depois de quase duas décadas de publicado?
[José Bassit] O livro Imagens Fiéis foi lançado em 2003. Até hoje o vejo muito atual, com um olhar humanístico sobre nossa religiosidade. Ainda recebo convites de alunos de fotografia e jornalismo para falar sobre ele e como foi o processo para realizá-lo. Me deixa muito feliz, toda vez que posto nas redes sociais uma foto do livro com o título Imagens Fiéis, receber carinhosamente muitos comentários de fotógrafos/as que dizem ter se inspirado no livro para suas carreiras e trabalhos. Feliz também que há ainda uma grande procura pelo livro pelas gerações mais novas, que o procuram também como base de pesquisa.
O tema religião, a religiosidade, é muito bem abordado e documentado por grandes fotógrafos brasileiros. Mas, na minha opinião, o seu livro é um dos mais contundentes e potentes. Ele sai da documentação pura/bruta e emana sentimentos e sensações verdadeiras. Conte um pouco como foram esses anos de registros.
Não imaginava que aquela viagem a Juazeiro do Norte, Ceará, em novembro de 1998, iria se transformar no meu maior projeto de fotografia, até então. Na época, trabalhava na grande imprensa em São Paulo, e estava sentindo que precisava desenvolver um projeto meu, de minha autoria, com brasileiros de verdade, mas ainda não sabia o que fazer. Foi quando um colega do Estadão me sugeriu conhecer a Festa de Finados, em Juazeiro do Norte, e que eu provavelmente encontraria o que estava procurando. Não pensei duas vezes, me preparei e parti para a grande viagem.
Me apaixonei de cara pelo lugar! Pelas pessoas e pela religiosidade delas. Não conhecia e nem tinha ideia do tamanho do fervor que elas tinham por Padre Cícero. Já voltei para São Paulo querendo saber sobre outras manifestações religiosas pelo país. Minha vida iria se transformar num mar de pesquisas sobre o assunto. Sem internet, li muitos artigos, fiz muitas visitas a USP para ler teses, dei muitos telefonemas e conversei com muita gente.
Com a ajuda de outros colegas fotógrafos, também tinha informações de festas realizadas em todo Brasil. Na época, o Christian Cravo e o Tiago Santana já estavam com um trabalho bem avançado e forte sobre o tema, mas que tratava basicamente da religiosidade do sertanejo nordestino. Daí resolvi que precisava mostrar a religiosidade do Brasil. Já no ano de 1999, tinha fotografado cinco festas em diversos lugares, e já tinha voltado mais uma vez para Juazeiro do Norte.
Imagens fiéis é o seu primeiro livro, e publicado por uma grande e famosa editora. O projeto gráfico é na medida certa, coerente. O livro não é grande, tem um tamanho confortável. Mesmo impresso em 2003, é contemporâneo no design. Como foram essas escolhas? Você, como autor, na estrutura Cosac Naify, participou desse processo?
O processo da edição do livro foi feito diretamente em parceria com o Charles Cosac (fundador e publisher da Cosac Naify) e o artista plástico e designer gráfico Vanderlei Lopes (projeto gráfico do livro), um grande parceiro no projeto. Na época, o Charles trabalhava em casa, e tinha um escritório montado para produzir alguns livros lá. Foi tudo feito na casa dele. A seleção das fotos, com a rica colaboração dos dois, e o projeto gráfico do livro. Participei ativamente do processo criativo do livro. Ele foi feito a seis mãos, com o Charles, o Vanderlei e eu. Tive total liberdade para opinar e sugerir as sequências das fotos.
O livro originalmente era para ser maior de tamanho, mas depois resolvemos que do jeito que ficou seria mais cômodo e confortável para manusear. Você poderia ler e levar o livro para onde quisesse, e não teria dificuldades para folheá-lo. A capa foi o mais demorado do processo. Minhas fotografias são 90% na horizontal, e queríamos uma capa com a foto vazada nela. Daí surgiu a grande ideia do Vanderlei de dividir a foto horizontal entre a capa e a sobre capa.
Imagens fiéis traz 101 imagens. O que acho muito. Mas, o seu livro deixa o gosto de querer ver mais. Como foi o processo da edição, a sequência das imagens? Você não achou arriscado tentar abarcar numa publicação um projeto tão grandioso como esse seu?
Eu tinha muito material, e sentíamos que havia espaço para poder trabalhar tranquilamente sem ficar repetitivo. O arrojado projeto gráfico do Vanderlei Lopes contribuiu muito para se ter uma narrativa agradável. As fotos estavam recebendo muitas críticas boas, por parte dos fotógrafos e público, já que antes da edição do livro, eu tinha exposto grande parte do trabalho algumas vezes. E com muito apoio da editora, resolvemos seguir em frente com todo o material selecionado.