Ricardo Labastier (1972) é fotógrafo da cor. Lembro de Ernst Haas (1921-1986). Formado e criado nas ruas e redações do Recife, Labastier criou uma relação forte com Brasília e tem algumas de suas obras mais marcantes realizadas no coração do Brasil.
Nessa conversa, falamos sobre sua experiência na Capital Federal e de um terreno nada confortável para ele: a fotografia preto e branco. Labastier é uma figura rara na fotografia brasileira. Busca a imagem, o belo, o feio, o encortinado pelo outro. Nunca foi abduzido pela vaidade ou consumido pelo mercado. Uma frase da antropóloga Georgia Quintas, que está no livro Abismo da carne, traduz Labastier: “Passou a vagar pelos velos do ordinário como se tudo fizesse parte de si, na esperança de enxergar melhor”.
Alexandre Belém
Jornalista, editor e co-fundador da editora Olhavê.
[Alexandre Belém] Você é nascido e criado em Olinda, Pernambuco. Sua iniciação na fotografia foi em jornais do Recife. Conte como foi essa mudança para Brasília. A cidade plana, sem mar, sem ladeiras. A luz...
[Ricardo Labastier] Sim, sou olindense “da gema” e criado sem algemas – coisa quase que impossível nos dias de hoje. Sem amarras de infância, isso que quero dizer. Rua, perturbação, arriação, alopração e, comparativamente, muito saudável em relação aos dias atuais. Tenho dois filhos e eles nunca vão ter o que tive e a recíproca é extensiva. Ninguém vai ter nada que pertenceu a outros momentos. Esse saudosismo utópico se apoia na própria utopia da questão. Ah, como eram bons aqueles tempos... essa me parece uma frase clichê, pois vai se repetir ao passar do tempo e das gerações.
Meu começo na fotografia foi exatamente na fotografia. Nas ruas, perambulando, buscando não um meio de vida “profissional”, mas, sim, um certo entendimento de mim mesmo. Naturalmente, o fotojornalismo nos jornais era o melhor viés para se enquadrar ao peso proletário patriarcalista: emprego, carteira assassinada, inclusão e etc. E, sinceramente, foi quase tudo muito bom. A partir daí, dos jornais no Recife, recebi um convite para trabalhar no Correio Brasiliense – à época majestoso jornal para os fazedores de imagens.
Foi uma mudança mítica, anunciada, digamos. Quando tinha cinco ou seis anos morei em Brasília com minha mãe por um breve período, três ou quatro meses, não lembro bem. Então, acho que foi um chamado, mais que uma mudança. Apesar do estranhamento “matemático”, parecia que me sentia em casa quando aportei em Brasília. Eu já tinha um cheiro do cerrado e precisava cair fora do barroco. A cidade dos versos planejados na prancheta me chamava. A luz sempre achei mais suave, as sombras mais arejadas. A luz que me apoiava era a luz branca das entrequadras silenciosas e as ladeiras de Olinda eram representadas nos declives dos eixinhos. Lembrança interessante: no primeiro dia que aportei na redação do Correio Brasiliense, ouvi de um fotógrafo a seguinte frase: tanta gente aqui no mercado, não sei porque trazer um nordestino... enfim, bad vibe a gente deixa pra lá, mas, o dito devia ser filho de um migrante, de algum lugar desse país que foi pra lá justamente laçar alguma coisa na vida. Enfim, achei até bom, me deu um oxigênio pra mostrar o motivo de convidarem um “nordestino”. O resto foi sabor sem fim.
Depois desses anos em Brasília, o que a cidade marcou na sua fotografia ou no seu fazer fotográfico?
Sim, foram 11 anos em Brasília (2000-2011) nesse segundo contexto. Bom, o suposto cartesianismo estigmatizado pulverizou-se nesse período. Fui percebendo coisas além das curvas e ideias. Vi que as ousadias do arquiteto tocam com brusca sutileza o plano. Vi e li as declarações de Lúcio Costa sobre os equívocos pós-criação. Enfim, para mim, esses planos são parâmetros dos criadores. Os meus parâmetros e referências, claro, são outros, muitos outros... saindo de um “modelo província”, para um “futuro” iconográfico – que não rolou, mas rolou, de tal forma, aconteceu. Uma ousadia urbanística? Sim. “Bucólica e urbana. Lírica e funcional”. Se mudou meu fazer? Acho que sim. A gente tem que tá aberto pra evoluir. Pra mim era um pouco contraditório (inicialmente) morar ali e ter que me entender fotograficamente com a cidade. Mas rapidamente, de certa forma, fui encontrando outras formas além das já conhecidas. Fui percebendo que signos, símbolos, grafismos e muitas coisas semiológicas foram incorporadas pela sociedade local e isso, ao meu ver, foi uma extensão do seu plano inicial. Formas concretistas, atonais, uma harmônica desordem. Bem extremo pra uma cidade planejada. Mas ela é bem isso por dentro.
A maioria dos seus ensaios são coloridos. E mais, a cor é objeto partícipe da sua imagem. Esse ensaio, que publicamos agora, foi realizado para o livro Os Criadores (quarto volume da coleção Brasilienses), nas comemorações dos 50 anos de Brasília. Conte como foi o desenvolvimento, a escolha pelo preto e branco, a reinterpretação de obras e pensamentos desses quatros artistas?
Exato, a cor faz muito sentido com a forma que vejo a vida e, sim, sei exatamente porque a uso e como uso. A escolha foi apenas por um único motivo: financeiro. Sempre ele. Enfim, tinha que ser preto e branco mas foi bom. Definitivamente não sou um fotógrafo preto e branco. Muitas vezes tento, insisto, busco, mas não é a minha praia. Não tenho o dom de ver a vida em preto e branco. Admiro, sou apaixonado por vários fotógrafos que fazem com maestria o preto e branco. Isso sempre me incomodou muito. Mas certa vez li entrevista de Francisco Brennand – que era um aficionado por fotografia, e ele dizendo que não gostava do preto e branco, pois achava que era um tecnicismo além do real. Ainda lembro: “a gente não enxerga o mundo em preto e branco”. Então, quando li essa entrevista comecei a entender. Eu tento, faço, configuro a câmera só pra preto e branco, saio pelas ruas mas, definitivamente, não vejo a vida em preto e branco. Não é cômodo, mas é a real. Não busco a cor. A gente é chamado. Temos que nos desvencilhar de técnicas, de fórmulas, e aceitar o que é mais orgânico e profundo. Saco cheio dessa academia fotográfica. Agora, sobre ser convidado pra realizar Os Criadores gera muito na subjetividade, né? Não estava na época, não vi a construção, não os conheci. Enfim, qualquer outro fotógrafo ou algum artista visual faria sua interpretação. Fiz a minha. Fui pelo presente ausente, pela vida que não se curva, pelo trançado desencanto, pelo cheiro de pneus queimados no asfalto, pelo afetivo que tem na cidade e pela sinceridade com a minha forma de rever tudo isso. Isso tudo poderia ser diferente hoje. Mas o hoje já se foi.
No seu livro Abismo da carne, a primeira parte da narrativa, publicada na parte branca, traz seis imagens de Brasília entremeadas com situações em outras cidades. Mas o seu olhar e interesse está bem delineado, como um caminho. Cito, por exemplo as fotografias Lumaria e O Rejeitor.
Então, todas essas imagens a que você se refere, do livro Abismo da carne*, com o olhar de Georgia Quintas, foi um entrelaçamento de saudades e dúvidas. Claro, estava morando num plano, nessas questões todas que citei e, de fato, batia uma coisa mais ou menos assim: o que busco aqui? Então ia na feira do Núcleo Bandeirantes, no Guará, e aí era uma forma de ir no Recife, em Olinda. Então ficava pairando o poeta do cerrado, Nicolas Behr: “Brasília é tudo isso que você tá vendo apesar de não tá vendo nada”.
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NOTA
* Projeto contemplado com o XIII Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia (2013).