O livro Brasília sob o olhar de Jesco (Brasília/Goiânia: Fund. Assis Chateaubriand/UCG, 2000) traz em seu título a particularidade mais desafiadora de um acervo: ser próprio pelo léxico de quem apropria-se do tema, mesmo que este seja por meio de demanda de registro oficial. Poderia ser mais um livro sobre Brasília, poderia ter grandes fotos inéditas, assim como outras impiedosamente já vistas. Brasília em seu vasto material iconográfico pode ser decupada através da produção de fotojornalistas, documentaristas e funcionários contratados por diversos órgãos da futura Capital Federal, entre outros perfis e inclinações de registro daquele fenômeno em processo de nascimento próspero-moderno de um lugar projetado. Diria que no caso do trabalho de Wolf Jesco von Puttkamer (1919-1994), fotógrafo brasileiro (nascido em Macaé, Rio de Janeiro, e de descendência direta alemã), os perfis elencados acima compõem seu trabalho sobre Brasília, e de maneira generosa se estende para outro campo e noção, os quais abarcam a antropologia.
Brasília sob o olhar de Jesco (2000), de Jesco von Puttkamer.
Embora, cronologicamente, Jesco tenha sido um dos pioneiros da antropologia visual no Brasil com seu extenso e primoroso acervo iconográfico de comunidades indígenas (resultado de 30 anos de dedicação e pesquisa), pelo qual torna-se nome essencial na antropologia1, durante sua atuação em Brasília (1959-1960) é possível perceber seu olhar empírico e objetivo que iria marcar sua trajetória como um dos grandes nomes da fotografia. O ato em observar, elemento fundante não só para a disciplina da Antropologia, é tradução do vigor de quem propõe-se a dar conta de determinado espaço social. Com esta qualidade apurada de sujeito cognoscente, Jesco parece ampliar a Brasília em construção para o nível de reflexão do humano. Isto sim, do descrever o que via pelo tom de quem caminha com curiosidade não apenas pelo que encontra, mas sobretudo de quem o atravessa. Escreveu o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira que o olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade. Contudo, segundo o autor, são apenas duas das faculdades do espírito que possuem “características bem precisas quando exercitadas na órbita das ciências sociais e, de um modo todo especial, na da antropologia”. Jesco possuía essas habilidades de forma nata. Quem possui o traço da empatia torna seu ofício e, por conseguinte, suas demandas em perspectivas idiossincráticas, especiais.
Em 1959, Jesco von Puttkamer recebe convite para atuar como funcionário do Departamento de Relações Públicas da Novacap (Companhia Urbanizadora da Nova Capital), no qual trabalha até 1960. Sua atuação compreendia documentar um período em que as coisas nasciam socialmente de modo precário para os candangos (trabalhadores que migravam para prestarem serviços durante a construção da capital), em que tudo germinava entre vigas e concretos, planos e projetos, hierarquias e simplicidades, instituições e povo. Um mundo em construção de poderes, camadas de aparência em prol do progresso e individualidades de trabalhadores, os quais também construíam seu território de habitação daquela Brasília de canteiros de obra.
Na edição Brasília sob o olhar de Jesco, certo excerto revela-nos um pouco mais da atuação profissional no período em que ele trabalhou na Novacap:
Nesse mesmo período, seus trabalhos podem ser vistos nos jornais O Popular e Última Hora. Jesco, apaixonado pela câmera, monta um dos primeiros laboratórios de fotografia em Brasília. O acervo de imagens da nova e bela capital, composto pelo fotógrafo e documentarista, é bastante expressivo pela qualidade das fotografias e por seu caráter inédito. Cinco mil imagens resgatam momentos da chegada dos primeiros moradores, o cotidiano de suas vidas, fatos pitorescos, paisagens, até os momentos mais solenes.2
A fotografia de Jesco a partir de Brasília pode ser considerada em sua potência histórica enquanto documento, assim como traça linhas bem definidas com a documentação antropológica. Os limites do enquadramento sugerem mais a crônica do lugar do que qualquer estratégia minimalista indicada pela arquitetura, como costuma-se observar no amplo registro da construção de Brasília por diversos fotógrafos. O livro torna-se álbum com cenas fotográficas, há ação (por vezes, muitos elementos confusos, no caso de imagens internas), a vida que deambula sem marcações. Jesco parece estar a rodar em 360º para abarcar os acontecimentos cotidianos em contraponto às solenidades. Esse aspecto, parte do arquivo de imagens publicado nesse livro, é apresentado através de várias facetas da solenidade, do grande dia da inauguração da capital federal. Vemos o povo se espalhar pelos registros de Jesco, nos quais é possível atentar para as escalas sociais da política e da religião; o governo, as forças armadas e as autoridades internacionais. Parece ser mais de um Jesco a estar em vários lugares.
As imagens da Caravana Integralista Nacional estão entre as mais curiosas do livro. A diversidade dos temas trabalhados na obra de Jesco é importante para o espectro antropológico da cidade. Particularmente, destaco os registros que direcionam o olhar para além do Plano Piloto. É na periferia que encaro uma Brasília profunda, representativa de condições severas do povo brasileiro. São, portanto, imagens do Núcleo Bandeirante (também chamada de Cidade Livre), que fora criado para abrigar os trabalhadores da construção civil, sendo eles em grande parte do Nordeste. Fico a imaginar um livro apenas com tal percurso do arquivo desse fotógrafo que viria a tornar-se grande antropólogo visual de campo.
Fico com uma imagem bem marcada em meu imaginário sobre a obra de Jesco, após conhecer esta publicação: aquela que mostra homens bem definidos em seus papeis (página 19). Há um quê de impacto visual ao vermos parte daqueles homens vestidos em seus ternos e outra parte – os candangos, homens fundamentais na existência de Brasília –, todos eles pintados, salpicados, marcados, malhados (de cimento ou tinta?). A fotografia é feita de impactos que geram relações, pensamentos e análises. Há muito a se analisar e desvendar nas imagens sociais de Wolf Jesco von Puttkamer.
Georgia Quintas
Escritora, antropóloga e co-fundadora da editora Olhavê.
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NOTAS
1. “O fotógrafo e documentarista brasileiro Wolf Jesco von Puttkamer (1919-1994) produziu cerca de 150 mil imagens, registrando o cotidiano de povos indígenas no Brasil, na segunda metade do século 20. Ele fotografou e filmou 62 etnias, incluindo os primeiros contatos entre índios do Xingu e a população não indígena. O acervo de Jesco, formado também por uma coleção de fotos da construção de Brasília, é mantido pelo Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia [IGPA], da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). O acervo já conquistou o título de Memória do Mundo Brasil e Memória do Mundo América Latina e Caribe. Em 2015, é um dos três candidatos brasileiros a ingressar na lista internacional do Programa Memória do Mundo, da UNESCO”. (Fonte: http://www.unesco.org/archives/multimedia/document-3923)
2. Jesco doou seu acervo de imagens à Universidade Católica de Goiás onde, como professor, recebeu o título de Doutor Honoris Causa.