Entrevista: Cléo Alves Pinto

Ouvir/ler o que o(a) artista pensa da sua obra é simplesmente maravilhoso. Porquês, motivações, dúvidas, mudanças de rota. É o chamado processo de criação. Em 2012 publiquei, em parceria com os amigos da editora Tempo d’Imagem, o livro Olhavê Entrevista. Coloquei no papel 27 conversas, publicadas até aquela data no blog Olhavê. 

No texto que fiz para apresentação do livro, deixei registrado a minha inspiração:

Aqui não poderia deixar de lembrar a obra Olhares Refletidos (Dazibao, 1989), no qual Joaquim Paiva entrevista 25 fotógrafos. Passados 23 anos, Olhares Refletidos ainda é gostoso de ler. E é com este sentimento – de poder reencontrar uma publicação – que esperamos que o Olhavê Entrevista guarde este conteúdo e que assim esta memória permaneça.

Lembrei disso no exato momento em que li as respostas enviadas pela arquiteta, urbanista e fotógrafa Cléo Alves Pinto (1979). Conheci Cléo numa leitura de portfólios em Brasília. Fiquei bastante impressionado com o seu “olho afiado”, sua acuidade visual. Nos ensaios que vi, Cléo sempre se mostra concisa e bem resolvida. Mas, por trás disso tudo tem a labuta de uma artista. Labuta diária. Por isso, bati um papo rápido sobre dois ensaios de Cléo sobre Brasília.


Alexandre Belém
Jornalista, editor e co-fundador da editora Olhavê.

    

Puxadinho Verde (2019), de Cléo Alves Pinto.

  

[Alexandre Belém] Conte como desenvolveu o ensaio Puxadinho Verde?

[Cléo Alves Pinto] A ideia para o Puxadinho Verde [2019] aconteceu quando eu estava fotografando o projeto Membranas, em 2015. Os dois projetos acontecem no mesmo setor de Brasília e são complementares. Enquanto fotografava as fachadas das casas para o Membranas, fui notando esses jardins particulares e achando muito estranho, pois para mim não fazia sentido cultivar um jardim particular enquanto se tinha um espaço para jardim dentro dos lotes e um grande jardim coletivo à disposição. Mas, analisando o comportamento do ser humano em sociedade, é possível entender que esse ato pode ser justificado como forma de estender seus limites, se apossando do que é público, e como forma de expor a sua identidade para o outro.

Acontece que o Membranas foi um projeto muito longo e cansativo, então eu demorei quatro anos para fotografar o Puxadinho. Em 2018 fiz alguns testes em meses diferentes para escolher a lente que usaria, o tipo de enquadramento e a época do ano que eu faria as fotos. Nessas visitas entendi, por exemplo, que as fotos expressariam melhor a ideia do projeto se houvesse uma luz uniforme, sem jogo de luz e sombras na imagem. Como eu queria que estivesse tudo verdinho e bem cuidado, fotografei o projeto entre janeiro e abril de 2019, que também é uma época em que o céu está mais nublado.

O processo de produção seguiu algumas etapas. Primeiramente eu fazia uma visita de reconhecimento à quadra1, onde anotava na planta a localização dos jardins privados, o tipo2 e fazia uma foto para registro3. Chegando em casa eu passava as informações para o AutoCad e numerava os jardins que havia fotografado, de modo que fosse possível localizá-los em uma segunda visita. Depois de feito o mapeamento para o Setor, classifiquei as fotos, identificando as que mais expressavam a ideia do projeto e voltei às quadras com o tripé para fotografar os jardins selecionados. Foi uma etapa demorada, pois eu precisava que o céu estivesse nublado, e muitas vezes enquanto eu fotografava começava a chover, ou o sol aparecia.

A princípio, a ideia era fazer um projeto do tipo inventário, assim como o Membranas, mas com o tempo entendi que nesse caso não era a quantidade que importava, mas sim uma pequena amostra que registrasse o comportamento que eu pretendia abordar no projeto e que mostrasse a diversidade de configurações dos jardins particulares. Se inserisse todos, as imagens ficariam repetitivas e a força do projeto se perderia. Sendo assim, fiz uma outra seleção na qual foram escolhidas 15 imagens.


É inevitável a primeira relação que temos de Brasília com o concreto, com o cinza e, me parece também, com prédios. Puxadinho Verde mostra outro cenário.

Para os forasteiros, de fato a imagem símbolo de Brasília é a da arquitetura de Niemeyer. Para mim, a imagem mais forte de Brasília é a do vazio – os espaços vazios entre as construções. E esse vazio em Brasília quase sempre é verde.

Os projetos Membranas e Puxadinho Verde saem do cenário típico brasiliense, pois foram fotografados em um setor do Plano Piloto que é desconhecido no Brasil. Acho que é um mérito dos projetos jogar luz sobre esse lugar.

No âmbito habitacional, associa-se Brasília à superquadra que, sim, é o modo de morar mais emblemático, mas aqui coexistem vários outros tipos de moradias. Na cidade que se propunha inovadora também houve espaço para a moradia tradicional, uma maneira de morar assim meio cidade do interior: em uma casa, com um vizinho de um lado, um vizinho do outro, sons cotidianos (barulho de TV ou rádio ligados, crianças, chorando, cachorros latindo...). A mudança está na relação casa-rua, pois não há rua em frente. Na frente existe o que eu digo que poderia ser um jardim coletivo, e nesse jardim se repete uma ação tão comum em qualquer outra cidade: a de fazer um puxadinho.

Então, nos projetos que desenvolvi até o momento, me interessou registrar a ação humana sobre o espaço, seja a fachada de uma casa, um jardim, uma janela, uma vitrine... e discutir o que essa ação pode indicar sobre o lugar onde o projeto foi desenvolvido.


Membranas (2015), de Cléo Alves Pinto.


O ensaio Membranas é de muito fôlego. Registrar 509 fachadas é impensável. Como foi isso?

Em 2014, quase seis anos após vir morar em Brasília, tive que caminhar pela primeira vez entre as quadras 900 e as 500 Sul, passando pelas 700. As casas das 700 (ou melhor, do Setor de Habitações Individuais Geminadas Sul) foram as primeiras habitações oficiais construídas em Brasília. Nem estavam no Plano Piloto do Lúcio Costa, mas entraram no projeto logo – substituindo o uso anterior destinado no local para hortas e pomares - quando se percebeu que era necessário providenciar moradia rapidamente para os primeiros servidores públicos que vieram para a cidade.

Ao todo foram criados seis tipos de casas geminadas nas 13 quadras do SHIGS com algumas variações. Na época, cada tipo de casa formava um conjuntinho: enfileiradinhas, todas iguais4. A entrada das residências era voltada para uma alameda de árvores (o jardim coletivo do Puxadinho Verde) e as garagens e entradas de fundos eram voltadas para uma rua de serviços, só para esse fim.

Como o tempo, como sempre acontece com conjuntinhos-de-casas-iguais, os proprietários foram fazendo adaptações, e o que era igual hoje em dia dificilmente é percebido. Cada casa agora é diferente. Igual mesmo foi trocar a entrada da casa para os fundos, para a rua de serviços. E então o que era jardim frontal se transformou em quintal da casa.

O que me chamou a atenção enquanto caminhava por ali foi como algumas pessoas vedaram o terreno com portão de ferro e cobertura, abdicando do jardim original que era parte do lote; enquanto algumas usam plantas, grades ou outros elementos que deixam a gente ver um pouquinho como é dentro do terreno; e outras deixam as portas e janelas abertas, dando para ver até como é a casa por dentro, as preferências, a intimidade. A vida real está ali, à mostra para quem passar e olhar. Imediatamente pensei que as fachadas das casas funcionavam como membranas, que deixavam passar mais ou menos informações sobre quem as habita.

Uns meses depois voltei com minha câmera e comecei a registrar essas fachadas, o que seria o meu primeiro projeto fotográfico. Acabei criando uma rotina: durante alguns meses, nos fins de semana, mais ou menos no mesmo horário, visitei todas as 13 quadras e fotografei o que, dentro dessa lógica, me chamou a atenção. Após cada visita de campo anotava em um diário as minhas principais impressões sobre cada quadra e o percurso que havia feito. Meu objetivo nunca foi conhecer quem morava ali, somente registrar o que os moradores deixavam um pedestre/expectador ver.

Ao final, 509 casas fotografadas compuseram o Membranas, isso corresponde a 19,86% das 2563 casas que compõem todo o Setor. Na mesa da minha casa, com as fotos impressas em tamanho pequeno, enfileiradas, fui juntando as semelhanças e separando as diferenças. Com isso percebi que podia agrupar as fachadas das casas de dez formas diferentes5 , da mais fechada até a mais aberta, incluindo até a própria ausência de vedação do lote.

Depois de separar as fotos nas categorias, elaborei um código único para cada uma delas. E, para finalizar, construí um fichário, que é o catálogo do projeto com a descrição dos dez tipos de membranas, com os percursos que fiz em cada quadra e com todas as imagens, divididas por categoria.

No total foi um ano dedicado ao Membranas. O projeto acaba por documentar também esse modo de morar nas 700 sul no início do século XXI. Minha ideia é refazer o projeto depois de 15 ou 20 anos para ver o que consigo identificar de semelhante ou diferente.


Você é arquiteta e urbanista. Curitibana que morou em Minas Gerais. Agora, vive em Brasília. Brasília é moradia, cidade escolhida, objeto de trabalho? O que mais?

Vale iniciar registrando que somente nasci em Curitiba, nunca morei lá. Em Minas morei em São Lourenço, São Sebastião do Paraíso (cidade da família da minha mãe) e por 23 anos em Belo Horizonte.

Em 2004 conheci Brasília, me apaixonei pela cidade e decidi que viveria aqui. Depois que me formei em Arquitetura e Urbanismo comecei a fazer concursos para cá e me mudei em dezembro de 2008. Em Minas sentia a energia estagnada, contida pelas montanhas; enquanto em Brasília a energia flui pela falta de barreiras. Além disso, a uniformidade visual existente em Brasília (pela regularidade do urbano e da arquitetura) me trazem tranquilidade. Em uma cidade “normal” sinto que perco muita energia tentando apreender a grande diversidade visual (prédios, casas, letreiros...), e isso me cansa.

Brasília é, ainda, o lugar onde escolhi viver e que me propiciou esses dois projetos – Membranas e Puxadinho Verde. Tenho vontade de fotografar outras coisas na cidade, mas não a vejo como meu principal objeto de trabalho. O que me motiva a fotografar é identificar algo peculiar no modo de viver ou de morar, e isso pode me chamar a atenção em qualquer lugar do mundo.

 

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NOTAS

1. No Setor de Habitações Individuais Geminadas Sul há 13 quadras (703 a 715), cada uma formada por conjuntos de casas com quantidades variadas. Nesse projeto só a quadra 715 não foi fotografada em função da não existência de jardim coletivo por causa da sua configuração diferenciada.

2. Delimitado com cerca, delimitado sem cerca, delimitado com grama, delimitado com terra, delimitado com objetos, desorganizado, semi delimitado e sem delimitação.

3. Na etapa de pesquisa foram fotografados 447 jardins.

4. Muitas informações sobre a história do SHIGS foram retiradas da dissertação de mestrado de Ricardo Reis Meira: MEIRA, Ricardo Reis. Frente ou fundo? A inserção da casa unifamiliar na escala residencial do Plano Piloto de Brasília. Dissertação (mestrado). Universidade de Brasília, 2013. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/handle/10482/16427>. Acesso em 17 abr 2020.

5. Impermeável, Impermeável/Semipermeável, Semipermeável, Semipermeável/Semipermeável, Semipermeável/Permeável, Permeável/Impermeável, Permeável/Semipermeável, Permeável, Permeável [2], Sem Membrana.

  

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