A representação visual do Brasil passa, inevitavelmente, pelos registros feitos por estrangeiros ao longo da história. As imagens produzidas através do desenho, da pintura e, mais tarde, por meio da fotografia têm, como autores recorrentes, viajantes e imigrantes, notadamente os provenientes do continente europeu. Eles criaram uma memória visual do país e uma concepção de povo ricas em significados históricos e políticos. Esse repertório de imagens, difundido em páginas de álbuns, livros e revistas, apresenta narrativas a partir dos pontos de vista de quem as concebeu.
Se nos ativermos à primeira metade do século XX, com a consolidação dos meios de comunicação de massa, a fotografia ganha destaque no meio jornalístico e na sociedade graças ao seu suposto status de "portadora de uma maior objetividade" na reprodução imagética da realidade. É nesse período, através da imprensa, que o meio fotográfico alcança grande circulação nacional e revela um papel fundamental na biografia do país e na construção do seu imaginário social. Considerando a história do fotojornalismo brasileiro, destaca-se um personagem que desempenhou um papel particularmente relevante: o francês Jean Manzon (1915-1990). Seu olhar extrínseco, presente na história do país através de fotografias que tiveram ampla disseminação, nos oferece um espaço de reflexão acerca da relação entre o autor e o resultado da sua produção. O fato de Manzon – um dos principais agentes da fotografia nacional desse período – ser estrangeiro poderia ter influenciado na representação imagética do Brasil?
Jean Manzon e os índios Kamaiurás, c. 1947.
(Fonte: Fernandes Junior, Rubens. Jean Manzon. São Paulo: Almeida e Dale, 2019)
A proposta deste artigo é refletir sobre o modo como o registro fotográfico da sociedade brasileira elaborado por estrangeiros pode influenciar na maneira como percebemos a nossa história. Nesta análise nos aprofundaremos na obra de Manzon, pois trata-se de um dos pioneiros na construção da imagem do país na imprensa nacional e internacional. Partiremos da perspectiva de Ariella Azoulay (2008, 2012) acerca das relações de poder estabelecidas no momento da realização de um registro visual ou, em suas palavras, durante o "evento fotográfico". Para a autora, a fotografia, longe de ser neutra, é um elemento central da tecnologia imperial. Se levarmos em consideração a premissa de que a fotografia é um instrumento colonizador, voltar ao passado e, particularmente, ao trabalho de Manzon, nos oferece subsídios para entendermos melhor o impacto da sua produção na concepção imagética do Brasil que repercute até os dias atuais.
Ao analisarmos um trabalho fotojornalístico, podemos elencar inúmeros fatores que influenciam o seu resultado. Alguns, entretanto, são mais facilmente perceptíveis, tais como: o ponto de vista a partir do qual a imagem é produzida, determinado tanto pelo posicionamento físico do fotógrafo em relação ao fotografado quanto pelo repertório das pessoas envolvidas em sua produção; o veículo em que essa imagem é difundida e o público para o qual ela se dirige; o contexto social e político em que foi produzida; as narrativas atreladas aos objetivos da produção; a linguagem e a técnica escolhidas para servirem aos objetivos do autor. Assim, para analisar no momento atual a obra de Manzon e a perspectiva estrangeira sobre a imagem do Brasil, abordaremos algumas de suas fotografias publicadas na revista O Cruzeiro nos anos 1940 e nos livros de sua autoria lançados entre os anos 1940 e 1950. Embora algumas vezes o fotógrafo tenha assinado o texto de suas reportagens, é através dos seus livros e da sua biografia autorizada que podemos examinar ainda com mais evidência a narrativa construída por ele para enquadrar o retrato do país.
A maleta europeia de Jean Manzon
Em quase uma década de trabalho fotográfico na Europa, Manzon acumulou considerável experiência em jornais e revistas, tendo atuado intensamente no período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. A revista Vu, com a qual colaborou, por exemplo, teve a contribuição de fotógrafos de vanguarda considerados os melhores da época: André Kertész foi um de seus principais colaboradores, ao lado de Brassaï, Henri Cartier-Bresson, Germaine Krull e Man Ray. Robert Capa, por sua vez, foi contratado pela publicação para cobrir as batalhas da Guerra Civil Espanhola, em agosto de 1936. Como integrante da revista, ao lado desses lendários fotógrafos, Manzon foi o autor de 517 imagens publicadas entre 1936 e 1939 (Leenaerts, 2010) e responsável por nove dentre as mais importantes reportagens da revista (Frizot; de Veigy, 2009).
Autorretrato de Jean Manzon na capa da revista Vu e matéria sobre deformidades realizadas através da fotografia e sua capacidade de sugestionar novas realidades (n. 554, 26 de outubro de 1938). Disponível aqui.
A pedido da Match, revista francesa para a qual também prestou serviços, Manzon fotografou o líder nazista Adolf Hitler, em 1936, além de diversos políticos franceses, seja em eventos oficiais ou em momentos pessoais. Como característica marcante de seu trabalho, pode-se destacar o esforço incansável que ele empenhava, pois fazia o que fosse preciso para alcançar a imagem desejada. Em sua biografia (Rebatel, 1991) são narradas diversas situações em que ele chegou a forjar cenas, como no caso do registro do "último salto" do bailarino russo Vaslav Nijinsky, cujas fotografias foram amplamente difundidas na imprensa internacional.
Fotorreportagem de Jean Manzon sobre o bailarino russo Vaslav Nijinsky, encomendada originalmente pela revista francesa Match, e publicada posteriormente na revista americana Life (Vol. 7, N. 1), em 3 de julho de 1939. Disponível aqui.
Durante o desenvolvimento de sua carreira na Europa, o jovem fotógrafo teve acesso ao equipamento fotográfico mais avançado da época, adquirindo um conhecimento técnico refinado, desde a tomada da imagem até o laboratório. Embora tenha seguido uma linguagem conforme o modelo vigente, Manzon desenvolveu sua própria assinatura. Ele trabalhou não só para a imprensa, como foi escalado em missão oficial pela marinha francesa, o que lhe rendeu a condecoração militar da Cruz de Guerra. Por fim, após ser exonerado pelo general Charles de Gaulle e ver a França ocupada pelos nazistas, rapidamente obteve um visto para a terra de seus sonhos: o Brasil.
Em 10 de agosto de 1940, a capa do jornal O Globo noticiou: “Chegam ao Rio sobreviventes da Batalha de Flandres”. É a partir desse momento que Manzon, um legítimo aventureiro, acompanhado da aura do fotógrafo de guerra, fiel à pátria, é efetivamente introduzido ao país. Foi com verdadeiro prestígio que o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) – órgão do governo do presidente Getúlio Vargas, responsável pela censura à imprensa nacional – contratou o francês. Além de treinar outros fotógrafos e ser o responsável pela produção de imagens oficiais do Brasil, Manzon era encarregado da cobertura fotográfica das atividades de Vargas. O profissional conquistou o presidente rapidamente e projetou a sua imagem pública, e também privada, ao ter acesso a momentos descontraídos e particulares, tais como comemorações com seus netos ou instantes de introspecção.
Fotografias de Getúlio Vargas publicadas em Jean Manzon: retrato vivo da grande aventura (2007, p. 40-45).
Entretanto, não foram apenas a sua reputação e a qualidade de suas fotos que fizeram Manzon ter uma grande proximidade com Vargas, mas também o fato de ele ter acesso a uma rede internacional que facilitaria a publicação de seu trabalho em jornais estrangeiros. Segundo sua biografia, ele conseguiu ganhar a confiança do presidente e de outros fotógrafos do departamento quando propôs a Lourival Fontes, então diretor do DIP, a criação de um novo setor denominado "Estrangeiro", através do qual as fotografias de sua autoria e de sua equipe poderiam ser vendidas às agências internacionais de notícia. "Eu conheço as revistas. Se elas recebem fotos grátis, elas pensam que é propaganda ou publicidade e são elas que pedem um pagamento. Se você as cobrar, elas estão certas de que se trata de um documento” (Rebatel, 1991, p. 146, tradução nossa). Porém, com a impossibilidade de um órgão estatal receber recursos de iniciativa privada, Fontes se rendeu ao argumento de Manzon desde que ele fizesse a transação por conta própria. Assim, o francês não só agradou à sua equipe oferecendo-lhes um bônus por fora de seus salários, mas também surpreendeu Vargas ao publicar imagens suas em jornais estrangeiros.
Fotorreportagem de 16 páginas sobre o Brasil assinada por Manzon
e publicada na revista Paris Match (n. 147, 12 de janeiro de 1952).
Através de seus contatos internacionais, Manzon satisfez a seus colegas, ao presidente e, logicamente, à elite brasileira, causando um impacto significativo na imagem do país. Ao comprar e publicar propaganda governamental como se fosse notícia, a imprensa estrangeira legitimou um retrato forjado do Brasil. Da mesma forma, a imprensa nacional contribuiu para validar essa mesma representação. Se por um lado a maioria dos meios de comunicação de massa já estavam alinhados ideologicamente ao regime, este, por sua vez, dependia diretamente da imprensa para moldar a mentalidade da população. Para isso, o governo lançava mão não apenas do aparato de censura do DIP, mas também da capacidade desse órgão em criar e difundir publicidade estatal indistintamente ao conteúdo jornalístico publicado na mídia.
Da propaganda ao jornalismo
Assim, depois de ter colocado seu trabalho a serviço da propaganda governamental e de ter viajado por todo o território brasileiro graças aos três anos em que atuou no DIP, não foi difícil para Manzon passar do serviço público à mídia privada. Após ter servido diretamente ao presidente, ele foi contratado por O Cruzeiro, a revista ilustrada mais influente da época e a primeira a circular nacionalmente. Ele chegou à publicação não apenas com uma concepção nacionalista na produção de imagens, mas também com a fama de ser o fotógrafo preferido de Vargas.
Manzon trabalhou para O Cruzeiro de 1943 a 1951. Antes da sua chegada, o uso da fotografia pela publicação era limitado, e muitas vezes as imagens sequer tinham relação direta com os textos. Diante disso, ele atuou ativamente na importação do modelo das grandes fotorreportagens da revista Match, que favorecia a inserção de uma grande quantidade de fotografias atraentes1. O novo gênero editorial fez brilhar os olhos da sociedade, que acolheu o encurtamento dos textos para dar espaço a um visual mais vivo nas páginas do semanário. De fato, o Brasil contava com um índice de analfabetismo elevado – em 1940, 56% da população com mais de 15 anos era analfabeta2 –, e as fotografias, que representavam uma modernidade jornalística, favoreciam uma compreensão mais imediata do conteúdo por parte do público nacional.
Quando consideramos o passado e nos deparamos com um país que não tinha acesso a certos equipamentos fotográficos e de impressão disponíveis na Europa, parece evidente que um europeu chegando em meio a esse ambiente revolucionaria o mercado de revistas ilustradas e a forma de fazer fotojornalismo. Retrospectivamente, parece "natural" que a modernidade fosse levada da Europa para os diferentes continentes e que as culturas locais se adaptassem, acolhendo o novo. A modernidade, afinal, era considerada universal, vinha de fora e era diferente do local. No entanto, é essencial revisitar a contribuição estrangeira à fotografia brasileira, especialmente no início da sua utilização pela imprensa, problematizando seu papel, provavelmente decisivo, não só na história do fotojornalismo, mas também na construção das representações e identidades do povo brasileiro.
A força do trabalho de Manzon na construção do imaginário nacional naquele período é inegável. Segundo levantamento de Helouise Costa em sua pesquisa de doutorado na USP, Um olho que pensa: estética moderna e fotojornalismo (1999), o fotógrafo realizou 346 reportagens durante os nove anos em que trabalhou para O Cruzeiro. De todas as edições publicadas no período, 72% possuem pelo menos uma reportagem de sua autoria, e cerca de 10% delas contêm mais de uma. Devido à relevância da sua disseminação em massa, foi através das páginas dessa revista semanal que a população brasileira se deparou com seu próprio retrato. Em outras palavras: com a publicação de uma quantidade exponencial de fotografias produzidas por Manzon, pode-se dizer que o olhar do francês foi um dos principais agentes na criação da representação do país naquele momento.
Fotorreportagem de Jean Manzon publicada na revista O Cruzeiro (n. 24, 2 de abril de 1949), sobre a fábrica de tecidos Bangu, propagandeando a industrialização e modernização do país e as "vantajosas relações humanas" oferecidas a seus funcionários. Disponível aqui.
Um Brasil posto em cena
Durante o período em que trabalhou para O Cruzeiro, Manzon continuou a colaborar com veículos internacionais. Ele chegou a ter dois contratos com a Magnum Photos: um em que a cooperativa atuaria como agente exclusiva do fotógrafo, vendendo e distribuindo suas imagens na América do Norte e na Europa, e outro em que ele teria o direito exclusivo de comercializar, no Brasil, as fotografias que a agência lhe fornecesse. Esse intercâmbio de material importado e exportado sugere que o francês dominou significativamente a produção e a comercialização da representação fotográfica do país.
O departamento fotográfico d'O Cruzeiro tinha um briefing a seguir: valorizar, da forma mais espetacular possível, o processo de conquista da modernidade através do seu grande realizador – o Estado, mais especificamente o projeto colonial do Estado Novo, de Vargas. O papel desses fotógrafos era “servir a uma pedagogia da visibilidade capaz de dar a ver aos brasileiros o que o Brasil verdadeiramente é. Ou melhor, o que ele poderá ser, já sendo.” (Jaguaribe; Lissovsky, 2006, p. 91, grifos no original). Naquele momento, a revista mantinha relações estreitas com o governo, pois os interesses de ambos ainda estavam alinhados. Esse briefing reunia, portanto, interesses públicos e privados e representava imageticamente o populismo dirigido à massa. Podemos concluir que o resultado visual dessa solicitação não refletia exatamente uma realidade. É precisamente nesse lugar indeterminado entre miragem e realidade que se encontra a criação de representações do país que partem de ideias preconcebidas de uma nação em curso, que não são nem totalmente autênticas, tampouco totalmente falsas.
É indissociável aquele contexto – que envolvia os objetivos econômicos e políticos da revista, a boa recepção das medidas populistas do governo pela sociedade e a sua autoestima enquanto nação – do olhar de Manzon, que sabia exatamente como deveria enquadrar a imagem do país para chegar às narrativas e aos objetivos de todos esses interlocutores. As técnicas utilizadas por ele, portanto, estavam a serviço de instruções bem elaboradas. O francês parecia ser o profissional ideal para cumpri-las: era um fotógrafo experiente, com alto nível de conhecimento técnico, que mantinha boas relações com a imprensa internacional. Além disso, atuava como militante3 do governo, sem questionar a sua agenda, sendo capaz de criar conteúdo institucional mesmo sem ter uma vivência profunda no país.
No que diz respeito à linguagem fotográfica da época, Manzon havia chegado recentemente da Europa, epicentro da vanguarda formal da fotografia, que incluía o construtivismo e o surrealismo. A fotografia era um campo privilegiado de experimentação e tinha um potencial de sugestionar percepções. Logo, para expressar a modernidade nacional almejada, nada melhor do que seguir a tendência do modernismo europeu aliado às potencialidades da cultura local. Como o objetivo principal não era dar espaço ao acaso e, muito menos, caçar o "momento decisivo", mas sim entregar a imagem pretendida, suas fotografias eram claramente montadas, bem posicionadas, estrategicamente pensadas e muitas vezes adulteradas. Ele buscava ângulos, formas e uma luz controlada para enfatizar os detalhes de acordo com o enredo desejado, estando familiarizado com o equipamento disponível mais avançado na época: Manzon tinha predileção pela Rolleiflex, e foi um dos pioneiros no uso dessa câmera no país.
Além de dar a ver os valores esperados — e também por isso —, a fotografia de Manzon foi um instrumento de colonização do governo Vargas, que manteve o controle do poder cultural dominante em suas mãos. A elaboração da imagem oficial do Brasil, mesmo dialogando com o modernismo brasileiro, pretensamente incluindo aspectos dito populares, ainda estava de acordo com os interesses do poder. Como Stuart Hall afirma:
Há uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual, por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular; para cercá-la e confinar suas definições e formas dentro de uma gama mais abrangente de formas dominantes. (Hall, 2003, p. 255)
Naturalmente, a modernidade social e o colonialismo são processos relacionados, pois sendo o primeiro um objetivo declarado, o segundo se torna justificável. No caso da obra fotográfica de Manzon, ela não só moldava a imagem do país conforme uma demanda estabelecida, como também contava com o repertório de um profissional estrangeiro que introduzia uma perspectiva universalizada na representação oficial do Estado. Portanto, podemos afirmar que essa narrativa, mesmo que legitimada, é insuficiente e incoerente para representar uma identidade imagética do país naquela época. Ao incluir pinceladas de aspectos locais em sua construção e desconsiderar as suas próprias singularidades, o imaginário nacional que se oficializou, "colocando a originalidade mestiça no centro de seu investimento sociocultural para exportação" (Schwarcz; Starling, 2015, p. 379), refletia sobretudo o ponto de vista das elites. Portanto, a imagem do Brasil estabelecida àquela altura representava uma "histórica única", para usar a expressão de Chimamanda Ngozi Adiche (2019).
Do jornalismo ao livro de fotografia
Assim como diversos fotojornalistas ao longo de suas carreiras, Manzon também publicava livros autorais de fotografia. As publicações editadas nacionalmente contavam com textos em português e em inglês, como é o caso de Guia pitoresco e turístico de São Paulo (ca. 1950) e da segunda edição em diante de Flagrantes do Brasil, publicado originalmente em 1950 e reeditado no mesmo ano. As edições comercializadas internacionalmente, como Rio de Janeiro (1951) e Féerie Brésilienne (1955), apresentavam apenas textos em francês. O fato de seus livros fotográficos contarem com versões estrangeiras nos oferecem pistas para entender as narrativas neles apresentadas. Ora, as publicações eram elaboradas para um público estrangeiro que não vivia no Brasil e, portanto, pouco conhecedor da realidade brasileira. Naquela altura, a imprensa internacional, que poderia levar informações privilegiadas sobre o país para um público cosmopolita, também contava com Manzon como um dos principais interlocutores pela difusão de sua imagem. Desse modo, através do conteúdo de seus livros podemos evidenciar, com ainda mais clareza, como o francês “enquadrou" uma imagem consolidada de nação, aproximando-o de seu repertório europeu.
Féerie Brésilienne, de Jean Manzon (1955).
No livro Féerie Brésilienne, que pode ser traduzido como "Magia Brasileira", temos de antemão, no próprio título, uma dica de que se trata de cenas imaginadas pelo autor, podendo estar manipulando a realidade. Uma das imagens mais simbólicas da carreira de Manzon – a do sobrevôo à tribo Xavante4 – está presente neste livro, abrindo o capítulo “A Amazônia”. Essa imagem, originalmente publicada na revista O Cruzeiro em junho de 1944, está ao lado de outra igualmente representativa no registro do processo de contato e integração dos povos do Xingu, em que os indígenas estariam recepcionando o avião, publicada na mesma revista em agosto de 1947. No livro, a legenda não deixa dúvida de que elas estão unidas com o intuito de opor "o índio bom" ao "índio mau": a imagem aérea apresenta os indígenas como "selvagens" e perigosos que atacam o avião, em contraste com a fotografia feita do nível do solo que retrata os indígenas "pacíficos" e acolhedores. No entanto, vemos, de um lado, os Xavante tentando se proteger daquele ser que sobrevoa sua tribo e, do outro, uma fotografia posada e bem arquitetada, em que os indígenas acabam por parecer colaboradores do seu processo de colonização e do avanço territorial da Marcha para o Oeste.
Página dupla do livro Féerie Brésilienne, de Jean Manzon (1955), abrindo o capítulo L’Amazone.
O discurso dicotômico sobre os indígenas que colaboram com o progresso e crescimento da economia do Brasil versus os que não cooperam é usado até hoje por diversos grupos com interesses financeiros nas regiões habitadas por essas comunidades. Imagens elaboradas que dão corpo a narrativas bélicas e reducionistas direcionadas aos povos que resistem ao contato com não-indígenas não é uma exclusividade de Manzon e estão presentes desde as primeiras representações imagéticas do país. Em 1596, Théodore de Bry, sem nunca ter estado no Brasil, ilustra a série Cenas de Antropofagia no Brasil a partir de relatos de viajantes. A coletânea foi traduzida para diversos idiomas, da mesma forma como as fotografias de Manzon estamparam revistas e livros estrangeiros, atendendo aos anseios de uma elite internacional por imagens que retratassem povos distantes e colonizados.
Embora sejam aspectos subentendidos em revistas semanais, sabemos que num livro autoral não é necessário rigor na ordem cronológica de apresentação das fotografias, e tampouco se exige que o discurso visual seja necessariamente factual. Porém, o que está em jogo nos livros de Manzon é o uso das mesmas imagens publicadas na imprensa, acompanhadas por uma narrativa ainda mais moldada e descompromissada com os fatos, tendo como autor não um artista visual, mas um fotojornalista com histórico de ter realizado cobertura de guerra, o que lhe conferia uma credibilidade profissional. Por possuir tal reconhecimento e ser o principal responsável pela criação de uma narrativa de país que pode ser designada oficial, é possível apontar Manzon como um agente soberano na perpetuação dessa história publicando-a na imprensa e no meio editorial.
Nesse sentido, torna-se legítimo considerar a obra de Manzon como uma fotografia de caráter imperial, que monopolizou a documentação do projeto de Vargas valendo-se de uma perspectiva estrangeira e colonial. Em outros termos: o fotógrafo editou uma imagem do país conforme um discurso preconcebido, que se enquadrava muito bem no seu repertório e no imaginário europeu, público a quem seus livros eram destinados. Assim, ao reproduzir uma narrativa hegemônica a partir de uma perspectiva estrangeira deslocada da realidade e corroborada pelas elites locais, suas imagens contribuíram com a estigmatização de diversos povos.
Em suma, o repertório acumulado pelo profissional não pode ser dissociado do seu ponto de vista ao realizar suas fotografias. Jean Manzon, um estrangeiro com know-how fotográfico e editorial amplamente difundido globalmente, manteve proximidade com o poder desde o início de sua carreira, cultivou relações com a imprensa internacional e desfrutou ainda de um grande prestígio ao chegar ao Rio de Janeiro como "sobrevivente da guerra”. Estes fatores desempenharam um papel fundamental na construção do seu olhar e, consequentemente, na criação de uma nova imagem do país. Revisitar a história do fotojornalismo nacional através de sua obra e do uso de fotografias fora de contexto, que tinham como objetivo estampar livros destinados a um público internacional, é um convite a reexaminarmos a violência que imperou no retrato do Brasil dos anos 1940 e 1950, através de perspectivas atuais. O "evento fotográfico", tal qual proposto por Ariella Azoulay (2012), não se encerra com a cena capturada, mas tem o potencial de ser renovado através de outro evento: o de revisar essa fotografia que, a partir de um "contrato civil", nos permite ressignificar visualidades e questionar narrativas oficiais. Enquanto as consequências de uma produção imagética se fizerem vivas no presente, ela não deve permanecer intocada no passado, compreendida como um produto final que marcou uma época. Sendo assim, a revisão do trabalho de anti-heróis – como Manzon – nos permite fomentar análises aprofundadas acerca dos objetivos e repercussões de produções estrangeiras institucionalizadas, ao longo da história, sobre o Brasil.
Marcella Marer
Curadora e doutoranda em Análise Cultural pela Universidade de Zurique
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NOTAS
1. Para maiores informações sobre O Cruzeiro antes da chegada de Manzon e as inovações implementadas na forma de produzir as reportagens, editar e imprimir a revista, ver Entre o local e o global: a invenção da revista O Cruzeiro, de Helouise Costa, em As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O Cruzeiro 1940-1960 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012).
2. Informação disponível em: https://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/11/ibge-indica-que-analfabetismo-cai-menos-entre-maiores-de-15-anos.html . Acesso em: 21 nov. 2023.
3. Termo usado por Mônica Pimenta Velloso para se referir à categoria de profissionais cuja tarefa era difundir o ideário do Estado Novo, previamente estabelecido pela elite intelectual (Velloso, 1982, p. 77-78); e posteriormente por Helouise Costa para se referir à atividade de Manzon no DIP (Costa, 1999, p. 145).
4. Embora a imagem possa ter sido extraída de um frame cinematográfico realizado no âmbito da expedição Roncador-Xingu, em que Manzon não estaria presente, ele nunca negou a sua autoria e até hoje ela é creditada ao fotógrafo. Sendo assim, trataremos a imagem como obra de Manzon. Para maiores informações acerca desse episódio, ver Cobras Criadas: David Nasser e O Cruzeiro, de Luiz Maklouf Carvalho (São Paulo: Senac, 2001).
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OBSERVAÇÕES
* Este artigo foi escrito com base na dissertação de mestrado L'émergence du photojournalisme brésilien à travers l'objectif du Français Jean Manzon: la mise en scène d'un nouveau Brésil, defendida em 2021 na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris, França).
* Para uma resenha sobre a dissertação, veja Un antihéros du photojournalisme, de André Gunthert, publicado originalmente na revista Fisheye (n. 51, Jan-Fev 2022), também disponível online no site L'image sociale. Acesse aqui.
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REFERÊNCIAS
Azoulay, Ariella. Civil imagination: a political ontology of photography. Londres; Nova York: Verso, 2012.
Azoulay, Ariella. The civil contract of photography. Nova York: Zone Books, 2008.
Carvalho, Luiz Maklouf. Cobras criadas: David Nasser e O Cruzeiro. 2. ed. São Paulo: Senac, 2001.
Costa, Helouise. Um olho que pensa: estética moderna e fotojornalismo. 1999. Tese (Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/T.16.1999.tde-05122022-112439>. Acesso em: 10 dez 2023.
Costa, Helouise. Entre o local e o global: a invenção da revista O Cruzeiro. In Burgi, Sergio; Costa, Helouise. As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O Cruzeiro (1940-1960). São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012.
Frizot, Michel; de Veigy, Cédric. Vu: Le magazine photographique 1928-1940. Paris: Éditions de La Martinière, 2009.
Hall, Stuart. Notas sobre a desconstrução do "popular". In Sovik, Liv (org.). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
Jaguaribe, Beatriz; Lissovsky, Maurício. A invenção do olhar moderno na Era Vargas. In Revista ECO-PÓS - Imagem fotográfica e imaginário social, v. 9, n. 2, 2006, p. 91. Disponível em: <https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/1084>. Acesso em: 20 dez 2023.
Leenaerts, Danielle. Petite histoire du magazine Vu (1928-1940): entre photographie d’information et photographie d’art. Bruxelas: P.I.E Peter Lang, 2010.
Manzon, Jean. Féerie Brésilienne. Neuchâtel: La Baconnière, 1955.
Manzon, Jean. Flagrantes do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Gráficos Bloch, 1950.
Manzon, Jean. Guia pitoresco e turístico de São Paulo. São Paulo: Livraria Martins, c.1950.
Manzon, Jean; Maurois, André. Rio de Janeiro. Paris: Fernand Nathan, 1951.
Ngozi Adichie, Chimamanda. O perigo de uma história única. Tradução: Julia Romeu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Rebatel, Henry. Le regard du jaguar. Rennes: Éditions Ouest-France, 1991.
Schwarcz, Lilia Moritz; Starling, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Velloso, Mônica Pimenta. Cultura e poder político. Uma configuração do campo intelectual. In Oliveira, Lúcia Lippi; Velloso, Mônica Pimenta; Gomes, Ângela Maria de Castro. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.