O retângulo colorido: Saramago e a fotografia em 'Viagem a Portugal'


O viajante cumpre a sua obrigação:
viaja e diz o que vê. Se não parece
dizer tudo, será erro seu ou
desatenção de quem leu (p.219). 



No outono de 1979 José Saramago deu início a uma viagem por Portugal. A sua única companhia era uma câmera fotográfica que levava 'ao ombro' durante a missão de percorrer seu país. O resultado desta incursão pelos caminhos mais conhecidos, e "também aonde se vai quase nunca”, resultou na obra Viagem a Portugal, publicada originalmente em 1981.

Algumas das fotografias feitas pelo escritor foram publicadas na primeira edição da obra, editada pelo Círculo das Letras. O livro chama a atenção mais pela descoberta das relações entre o texto de Saramago e suas fotografias, e pelas relevantes colocações a respeito da função da imagem fotográfica enquanto modo de conhecimento, do que pela qualidade das suas imagens, que se apresentam de maneira um tanto irregular - algumas pecam na composição e enquadramento, outras se destacam pela excelência. Por fora, o livro tem aparência e formato de enciclopédia; por dentro, se revela como uma narrativa de viagem bastante peculiar, na qual abundam opiniões e reflexões sobre os lugares onde o escritor esteve, locais em que comeu e caminhos que percorreu. 

Referindo-se à si mesmo em terceira pessoa, logo no prefácio o autor se coloca como um viajante sensível às paisagens e às pessoas que encontraria ao longo do caminho:

...um espelho refletor das imagens exteriores, uma vidraça transparente que luzes e sombras atravessaram, uma placa sensível que registou, em trânsito e processo, as impressões, as vozes, o murmúrio infindável de um povo. (p.5) 

Em todos os momentos Saramago tem a fotografia como uma aliada: algumas vezes registra imagens para auxiliar a sua memória, em outros sua fotografia serve de ilustração ou testemunho visual daquilo que ele viu e descreveu de modo notório. 

Em companhia de um mapa, define caminhos, escolhe vias, seleciona pontos de interesse que habitam seu imaginário e assume que às vezes é preciso voltar e refazer rotas. A princípio é possível dizer que ele se pauta pela vontade de conhecer monumentos históricos erguidos pelos seus conterrâneos, em sua maioria igrejas e museus, e também pela curiosidade em conhecer os lugares de nascimento e vida de personagens que marcaram a história e a cultura de Portugal. 

Assim, Saramago percorre de norte a sul o território continental português, e constrói sua narrativa em texto e imagens, repleta de pequenas histórias, casos e descrições. De carro, a viagem começa na fronteira ao norte com a Espanha, mais precisamente na cidade de Miranda do Douro. É dali a primeira fotografia do autor que aparece no livro (fig.1). A vista de uma encosta, a pedra amarela, que marca uma das divisas entre os dois países. A peregrinação termina na primavera do ano seguinte, ao sul, no Algarve. 


Fig. 1 (p. 8-9).


Ao longo do caminho, Saramago faz questão de entrar e conhecer de perto igrejas, mosteiros e museus, não tanto para orar aos pés das imagens sacras, mas para conhecê-las de perto,"porque são obra do gênio do homem, beleza criada" (p.88). O resultado desta peregrinação pode ser dividido em séries de fotografias (fig. 2 a 11) de detalhes de colunas, pórticos e figuras que "aos seus olhos desabituados de arquiteturas sacras rurais, tudo ganha facilmente foros de maravilha" (p.9).


Fig. 2 a 11.


Logo no começo da viagem, o escritor compartilha a sua dificuldade em capturar o instantâneo, possivelmente pela falta do hábito de fotografar. Lamenta não ter registrado uma cena memorável, e nota-se até mesmo um certo desconforto de Saramago neste trecho:

O viajante leva ao ombro, como lhe compete, a máquina fotográfica, mas envergonha-se, ainda não está habituado aos atrevimentos que os viajantes costumam ter, e por isso não ficou memória de retrato daquelas sombrias mulheres que estão falando ali desde o princípio do mundo. O viajante fica melancólico e augura mal de viagem que assim começa. (p.7) 

Um pouco mais à frente este 'mal' se dissipa, e Saramago consegue fotografar um casal que o convida a partilhar um pão e um pouco de conversa à beira da estrada (fig. 12). Daniel São Romão e sua mulher parecem bastante à vontade na fotografia depois de alguns minutos de convívio. O escritor registra também outros elementos que descreve a partir deste encontro: 

...um homem e uma mulher que ali estão sentados, ela com um grande pão no regaço, que daqui a pouco partirá para compartilhar com o viajante. Estão os dois e o alambique, um gigante de cobre ao ar livre, sem nenhum medo às humidades, o que não admira, com a fogueirinha que tem por baixo. (p.16)


Fig. 12 (p.15).


Mais adiante, o escritor já habituado com a fotografia, faz um belo retrato de duas meninas que encontravam na vila de Castro Laboreiro. Com semblante sério, elas estão imóveis, tão curiosas quanto assustadas com aquele registro (fig.13). Nos seus olhares percebemos o silêncio da pausa. No texto, o escritor nos guia pela fotografia e a exalta enquanto dispositivo de memória: 

O viajante louva, em pensamento, as maravilhas da técnica: a memória, infiel, poderá renovar-se neste retângulo colorido, reconstituir o momento, saber que era de escocês a saia, crespas as tranças, e as meias de lã, e o risco do cabelo ao meio, e, descoberta inesperada, que uma outra bonequinha havia, caída lá pra trás, acenando com a mão, com pena de não ficar de corpo inteiro na fotografia. (p.55). 

Muito provável, portanto, que Saramago tenha notado estes detalhes apenas ao olhar a fotografia depois de terminada a viagem, e justamente por isso acredita na sua capacidade de renovar memórias. 


Fig. 13 (p.54).


Outros retratos do povo português aparecem ao longo do livro. Em Proença-a-Velha, umas senhoras que bordam e sorriem para a câmera demonstram certa cumplicidade com o viajante (fig.14). No texto há uma menção a um contato prévio estabelecido com elas, e talvez por isso tanto o fotógrafo quanto as fotografadas parecem estar confortáveis na cena.

Esteve de conversa com umas mulheres que em cadeirinhas baixas faziam malha ao resguardo de uma parede, e foi adiante apreciar vistas. (p.13)

Há também outros retratos notáveis, como uma fotografia de uma pequena banda de músicos da região central de Portugal (fig. 15); e de pescadores remendando redes no norte do país sob uma luz de fim de tarde (fig.16). Saramago não se dedica a descrever estas últimas imagens; parece mais interessado nas obras criadas pelo homem do que pela figura humana.


Fig. 14 a 16.


O autor chega até mesmo a ensaiar e depois fotografar uma conhecida estátua como se fosse um personagem vivo (fig.17): 

O viajante tira-lhe o retrato, e ele apruma-se, olha para a objectiva, quer ficar favorecido, o Basto, com o seu fundo de ramos verdes, como convém a senhor de terras e montanhas. (p. 36)


Fig. 17 (p.35).


As diversas fotografias de monumentos servem como um ponto de referência da viagem de Saramago. Por onde passa procura descrever detalhes destas criações: algumas delas, porém, apresentam tais características de excelência, que qualquer palavra ou imagem ficaria aquém do que ela representa. Quando visita a Igreja da Nossa Senhora da Orada, invoca a necessidade de outros meios e sentidos para poder apresentá-la, pois as palavras não são suficientes: 

...[a] pequena construção românica decentemente restaurada, é tal obra-prima de escultura que as palavras são fatalmente de mais porque são desgraçadamente de menos. Aqui pedem-se olhos, registros fotográficos que acompanhem o jogo da luz, a câmara de cinema, e também o tacto, os dedos sobre estes relevos para ensinar o que aos olhos falta. (p.54)

Em outras passagens o escritor assume que um dos papéis da fotografia é dar visualidade a estes lugares e monumentos tão belos quanto distantes, permitindo que outras pessoas os conheçam mesmo sem ter estado próximos dali. Como quando menciona as esculturas de Aleijadinho, as quais já tinha conhecimento através de fotografias, para compará-las às estátuas do Santuário da Senhora dos Remédios, em Lamego (fig.18): 

... grandes estátuas de fantasiosos reis no alto de pedestais, que, pelo recorte, lembram as figuras do Aleijadinho em Congonhas do Campo, no Brasil. Não que o viajante lá estivesse ido vê-las, disso não se pode gabar, mas correm mundos fotografias, só as não vê quem não quer. (p.121)


Fig. 18 (p.121).


A fotografia como modo de conhecimento de coisas longínquas aparece nas palavras de Saramago quando ele se refere ao Domus Municipalis, em Bragança. Buscando diferenciar a experiência presencial em contraposição à experiência imagética, o autor afirma: 

... quem a vê em fotografias julgá-la-á rectangular, e fica surpreendido ao dar com cinco lados desiguais, que uma criança não desenharia. (p.19)

Neste caso, para o escritor, a fotografia não dá conta da totalidade da construção e fica aquém de suas características. Mesmo quando exalta as qualidades da fotografia como forma de disseminar a existência de certas obras espalhadas pelo mundo, na linha de pensamento que vai de encontro ao Museu Imaginário, de Malraux, Saramago enfatiza a importância em ver de perto para, assim, alcançar a 'aura' perdida durante a reprodução fotográfica: 

Aqui está este S. Pedro do século XV, de que muito se tem falado e até já emigrou para terras de estranja, tão valioso é, toda a gente o conhece de fotografia. Mas é preciso vê-lo de perto, o rosto de homem robusto, a boca de muita e não recolhida sensualidade, a mão que ampara o livro, a outra que segura a chave, e o envolvimento que o manto faz... (p.99)

Mesmo consciente disso, em diversos momentos Saramago utiliza sua câmera como meio de reproduzir obras e peças as quais nunca tinha visto. Uma destas é a fotografia do tricentenário Palio da aldeia de Cidadelhe (fig.19), que ocupa em destaque uma página inteira do livro. No texto, a imagem recebe uma minuciosa apresentação: 

... a grande peça de veludo carmesim bordada a ouro, a prata e a seda, com o largo motivo central, opulenta cercadura que rodeia a custódia erguida por dois anjos, e ao redor flores, fios entrelaçados, esferazinhas de estanho, um esplendor que nenhumas palavras podem descrever. (p.109)

Aqui a fotografia aparece enquanto mediação, para que o leitor conheça visualmente o que suas palavras descrevem detalhadamente. 


Fig. 19 (p.109).


Mas não só o patrimônio português merece destaque no livro: há também momentos em que a fotografia é usada por Saramago para mostrar o que lhe parece estranho. Como a figura de São Sebastião (fig.20), que encontrou também na aldeia de Cidadelhe, e que causou espanto pelas "enormes orelhas que este santo tem, verdadeiros abanos, para usar a expressiva comparação popular" (p.107). Ou então as estátuas de São Jose "velhinho mais que o natural" e da Virgem Maria "morena, de longos cabelos, maquilhada de sombra azul nas pálpebras, pestanas alongadas a rímel", vistos lado a lado na Igreja de Santa Maria do Castelo, em Torres Vedras (fig.21).


Fig. 20 (p.106).

Fig. 21 (p.158-159).


Ao oferecer certas imagens ao leitor, Saramago pretende estimular a sua leitura. Como no trecho em que apresenta um detalhe de uma das muitas portas de igrejas que fotografou, o escritor transfere para o observador sua interpretação (fig.22): 

... um sapateiro convidou o viajante a ver o macaco da porta lateral norte. O macaco não é macaco, é um daqueles compósitos animais medievos, há quem veja nele um lobo, mas o sapateiro tem muito orgulho no bicho. (p. 53)


Fig. 22 (p.53).


Além destes detalhes da cultura material que registra ao longo de sua peregrinação, Saramago não deixa escapar nenhuma paisagem, inclusive aquelas alteradas pelo homem, como as montanhas coloridas que lhe aparecem no horizonte da estrada (fig.23). 

Por cima das elevações naturais, duas montanhas, cada qual com sua cor, cinzento e amarelo queimado, sem um fio de erva nelas, sem um galho de árvore, nem sequer uma rocha, destas que por todo o lado surgem e se inclinam sobre a estrada. São os montes de detritos das minas da Panasqueira (p.134)

Ao inserir estas montanhas em meio à vegetação, o autor destaca sua imponência enquanto elemento perturbador àquele cenário. 


Fig. 23 (p. 135).


Há também aquelas paisagens modificadas por construções às quais nos adaptamos visualmente ao longo do tempo e, de certo modo, se apresentam em harmonia com o natural. Tanto que se fossem retiradas dali, como afirma o escritor, seriam como fotografias alteradas. 

Sem o Palácio da Pena a serra de Sintra não seria o que é. Apagá-lo da paisagem, eliminá-lo que fosse duma fotografia que registe aquelas alturas, seria alterar profundamente o que já é natureza. (p.173)

Ao longo do tempo estas alterações na natureza e nos monumentos somente serão percebidas a partir das fotografias de quem lá esteve, e Saramago sabe que seu trabalho acaba por constituir uma memória que resistirá a ação do tempo. Quando encontra os 'palheiros' e se dá conta que este tipo de construção é cada vez mais raro em Portugal, ele projeta que dali a algum tempo só existirão as fotografias para apresentá-las a quem porventura não os conheceu (fig.24): 

Lá estavam os sobreviventes, grandes barracas de tábuas escurecidas pelo vento e pela maresia, algumas já desmanteladas, outras leva-lhes o vento as telhas. Não tardam muitos anos para que disto só reste a memória fotográfica. (p.85)


Fig. 24 (p.84).


As 251 fotografias presentes nesta primeira edição de Viagem a Portugal estão intrinsecamente ligadas ao texto, cuja extensão e profundidade predominam na narrativa da publicação. A obra fora encomendada a Saramago pela editora, visando a produção de uma obra ilustrada de cunho turístico assinada pelo escritor, que no final dos anos 1970 já contava com grande prestígio no campo da literatura. Podemos especular que o formato final que publicação tomou – um híbrido entre enciclopédia, catálogo turístico, relato de expedição e livro de história – tenha sido o resultado possível do acordo entre as partes, conjugando assim as demandas do editor às do escritor.

Saramago é autor de 32% das imagens presentes na obra, enquanto que os outros 68% são creditadas a Asta e Luís Almeida d'Eça, fotógrafos profissionais que assinaram diversas outras publicações de cunho turístico. Assim, se no final dos anos 1970 a fotografia colorida ainda era pouco apreciada pelo campo artístico e pelos fotógrafos documentais clássicos, mas muito presente na imprensa ilustrada e no mercado editorial, podemos especular ainda que opção pela utilização do filme colorido por Saramago tenha sido uma demanda da editora, visando estabelecer uma continuidade estética e narrativa entre as fotos do escritor e aquelas produzidas pelos outros fotógrafos.

As fotografias de Saramago são parte da memória do autor sobre seu país, transitando entre o humano e suas construções simbólicas, carregando ainda toda a potencialidade e a fragilidade própria a este tipo de imagem. Mesmo que não se saiba muitos detalhes a respeito de cada fotografia feita pelo escritor durante esta viagem, nem sobre a totalidade do conjunto e nem mesmo sobre o seu processo de edição, esta obra é um modo interessante para nos aproximarmos e conhecermos a prática e a reflexão do viajante Saramago sobre a potencialidade desses retângulos coloridos.

 

 

Guilherme Tosetto
Professor no curso de Fotografia do Centro Univ. Belas Artes de São Paulo.

 

 
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REFERÊNCIAS

MALRAUX, André. (1965). O Museu Imaginário. Lisboa: Edições 70. Tradução: Isabel Saint-Aubyn.

SARAMAGO, José. (1981). Viagem a Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores e Editorial Caminho.


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