Ancestralidade lapidar para o Brasil

Ao perceber um livro em sua concepção física, matérica, com ânimo próprio ao objeto em si, manuseado de acordo com o grau de interesse do leitor, ele pode transcender o concreto e mover-se para as particularidades da sua própria história de pesquisa e dedicação. O registro visual é determinado pela potência de quem enraizou o ímpeto do encontro e da alteridade essencial (através do respeito e consciência da identidade plena do outro ser humano). Ou seja, nada é simples. Tampouco fácil viabilizar em um trabalho de fotografia, o qual gere a importância do que é possível congregar à imagem enquanto arquivo e repertório de compreensão sobre grupos sociais, etnias e populações. 

Alguns fotógrafos, embora não tenham formação na área antropológica, ativam com grande habilidade a investigação visual em determinado contexto e grupo social de realidade cultural distinto ao seu. O livro Zo’é (Ed. Terceiro Nome, 2013), do fotógrafo Rogério Assis deixa essas marcas de forma contundente e profissional. Faz estabelecer, na dicotomia entre o registro e o documento, superfície bem arada para o objeto livro em sua propriedade cara ao conhecimento. É plausível observarmos já no relato de Rogério Assis, assim como nos textos dos antropólogos Márcio Meira e, em especial no de Dominique Tilkin Gallois (antropóloga de referência nos estudos sobre usos e costumes de várias etnias da região amazônica, inclusive sobre os Zo’é, a qual apresenta nesse livro texto etnográfico precioso), para compreender a beleza e oportunidade de conhecermos o povo indígena Zo’é em imagens fotográficas. É no encontro com a imagem que o pensamento cria laços amplos para futuras pesquisas e mobilizações.

 

Zo'é (2013), de Rogério Assis..

 

O livro Zo’é compreende duas fases do contato de Rogério com essa etnia, em 1989 e 2009. Seu primeiro contato com os Zo’é ocorre no susto para o fotógrafo. Estava em Belém, e iria realizar uma demanda institucional para a Funai, quando atravessou a notícia de que uma nova etnia indígena fora encontrada. Como relata e esclarece Assis:

Na verdade, a etnia fora contactada poucos anos antes pela Missão Novas Tribos que, devido a uma devastadora epidemia de gripe, buscava socorro junto à Funai para evitar a completa aniquilação desse povo. Eram então 147 indivíduos sofrendo, além da debilitação de saúde, um intenso processo de evangelização por parte dos missionários.

Rapidamente, foi organizado o que viria a ser o primeiro contato oficial* da Funai (...). No aeroporto de Belém, um bimotor aguardava para nos levar até Santarém, onde tomaríamos um helicóptero em direção à aldeia. (...)

Rogério Assis descreve que não houve sequer tempo de buscar mais alguns rolos de filme. Então, tão somente com quatro rolos de filmes preto e branco Tri-X, seguiu a viagem. Após uma hora e meia, identificou-se a área indicada entre os rios Cuminapanema, Urucuriana e Erepecuru, no estado do Pará; após alguns minutos, em busca de uma clareira, o helicóptero pousou. A edição do livro traz pouco a pouco a narrativa visual daquele encontro.

Ao longo da edição do livro, as fotografias descortinam gestos, ações, cenários e práticas cotidianas da aldeia. Embora, exista uma ponte temporal entre a primeira vivência e a segunda, as fotografias encaixam-se nessa linha do tempo. O fio da história segue firme. Rogério Assis, em 2009, novamente vai ao encontro dos Zo’é. Naquele momento, eram 246 indígenas registrados até julho daquele ano.

A qualidade documental dos registros, presente nesse livro de fotografia, coloca a pesquisa de Rogério Assis como obra rara e fundante para o entendimento dos fazeres e simbologias dessa etnia indígena. As imagens não são tratadas com distanciamento ou mecanismos (maneirismos estéticos) de inflação do que supostamente é distinto. Fato este, fácil de ser alcançado quando o interlocutor “passa” pelo campo de vivência e, entretanto, a experiência não se consubstancia. O livro Zo’é dialoga com indivíduos essenciais, uma ancestralidade lapidar para o Brasil, de modo digno e ciente da grandeza do outro ser humano. Como diz, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (citação esta tão urgente desde sempre e para o hoje):

A impressão que tenho é que o ‘Brasil’ até bem pouco tempo não queria nem saber de índio, e sempre morreu de medo de ser associado ‘lá fora’ a esse personagem, que deveria ter sumido do mapa há muito tempo e virado uma pitoresca e inofensiva figura do folclore nacional. Mas os índios continuam aí e vão continuar.

Os índios existem, resistem e habitam também os livros. 

 

 

Georgia Quintas
Escritora, antropóloga e co-fundadora da editora Olhavê.

  
  

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NOTA
* O povo Zo’é relata a ocorrência de contato indireto com os kirahi (não-índios) desde muito antes. A partir de 1982, a Missão Novas Tribos passa a frequentar a região com um projeto de evangelização. Devido a estes encontros, muitos Zo’é adoecem. Em 1988 a Funai veda a atuação dos missionários, que são efetivamente retirados da área em 1991. A demarcação da Terra Indígenas Zo’é, no Pará, acontece entre 1996 e 2000, sendo efetivamente homologada em 2009. (Fonte: Instituto Socioambiental, disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Zo%27%C3%A9>. Acesso em: 16 nov 2022).


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