Entrevista: Felipe Russo

Nesta conversa com o fotógrafo Felipe Russo, falamos sobre o seu novo livro Garagem Automática (Bandini Books, 2019) e, principalmente, me interessei em entender o seu processo e pensamento sobre o fazer de publicar. 

Aqui, vou me apropriar do que escrevi sobre Felipe há exatos seis anos: numa época em que a Fotografia (como ação, comunidade, modo de vida, prazer, etc.) anda de mãos dadas com egos extremos e conchavos, ter um fotógrafo sério e concentrado em seu ofício só poderia promover projetos com coerência.

Para ilustrar esta entrevista, Felipe nos enviou um conjunto de fotografias extras que não entraram na edição final do livro.

Alexandre Belém
Jornalista, editor e co-fundador da editora Olhavê.

  

Garagem Automática (2019), de Felipe Russo.

  

[ALEXANDRE BELÉM] Felipe, comecemos pelo final: como surge o seu mais novo livro, Garagem automática?

[FELIPE RUSSO] Garagem Automática surge primeiro como uma exposição na Casa da Imagem – Museu da Cidade de São Paulo, em 2016. Terminado esse processo, passei a trabalhar com as fotografias na tentativa de construir uma sequência de imagens para o livro. Acredito que essa é a espinha dorsal de um livro de fotografias: é a partir da sequência que o livro se constrói como objeto. Trabalhei por algum tempo usando as mesmas imagens que estavam na exposição, até que entendi que ali não tinha um livro. Voltei aos negativos e olhei tudo que tinha produzido, separei algumas imagens e comecei a re-trabalhar a sequência.

Quanto mais convivia com as imagens mais percebia que o livro precisava dar conta de uma experiência mais sensível do interior desses prédios. Esse é um ponto que me interessa muito: encontrar, nas próprias imagens, a voz do trabalho e construir um livro que respeite essa voz. O livro propõe um percurso mediado pelo ritmo mecânico, as texturas, superfícies, a luz e a cor desses interiores. A sequência é quebrada em fragmentos subdivididos por páginas impressas em preto, oscilando entre momentos mais claros e descritivos, e outros mais escuros e abstratos.

Fiz muitos bonecos do livro e tinha uma certa clareza da estrutura que queria para o trabalho, mas foi fundamental colaborar com Nicolas Silberfaden, editor da Bandini Books e Julien Imbert, o designer do livro. Trabalhamos juntos por alguns meses e publicamos Garagem Automática no segundo semestre de 2019. Nicolas e eu fizemos o mestrado juntos e sempre mantivemos uma relação de amizade e de diálogo sobre nossa produção, e hoje dividimos o mesmo espaço de trabalho. Quando ele começou a Bandini disse que gostaria de publicar meu livro, e mais uma vez foi um trabalho em que me envolvi em todas as etapas. Fiquei muito satisfeito com o resultado que alcançamos e aliviado por finalmente colocar esse o livro no mundo.

 

  

Você publica Garagem após cinco anos do livro Centro. Por que esse intervalo? Contingências ou tempo de maturação?

Difícil dizer com clareza a razão desse intervalo, acho que é uma combinação de coisas. Maturação com certeza tem um peso importante, levei bastante tempo para entender como repensar o trabalho depois da exposição na Casa da Imagem. Demorei para entender como poderia editar o livro e precisei de tempo para viabilizar a sua publicação. Além disso, foi difícil me manter emocionalmente e intelectualmente conectado ao trabalho – de certa forma a exposição criou uma sensação de fechamento e minha cabeça já estava em outro lugar.

Eu sempre estou fotografando e trabalhando em mais de um projeto por vez. Tem um momento da produção, que me dá muito prazer, que é o inicio da formação de um discurso ou entendimento de um processo. Fotografo de forma muito livre e vou juntando as imagens tentando entender caminhos possíveis, e quando um novo caminho começa a se desenhar é um momento de muita entrega. Gosto demais desse espaço de pouco entendimento e de busca, é um momento de revelação e aprendizado. Confesso que nesse momento tenho a tendência a me afastar de trabalhos já concluídos ou que estão mais finalizados. Acho que isso é um dos desafios da produção de projetos longos, muitas vezes a cabeça e o corpo já não estão no mesmo lugar.

Além disso, muitas vezes percebo que o degrau final da edição de um livro acontece quase que “sozinho”. Você fica meses quebrando a cabeça até que larga o trabalho de lado, aí você volta e resolve a edição em uma tarde. Penso que esse distanciamento é fundamental e que o trabalho fica ali sendo ruminado em algum canto mais inconsciente do nosso corpo. No caso do livro Garagem Automática, Nicolas e Julien da Bandini Books foram fundamentais para me ajudar a voltar ao trabalho.

Uma outra questão é minha atuação como professor e o envolvimento em projetos de outros artistas. Nesse período tive momentos em que me dediquei intensamente ao trabalho de outras pessoas e me desliguei do meu. Com o tempo tenho entendido e respeitado esses movimentos.

    

Centro (2014), de Felipe Russo.

   
 
Centro, publicado em 2014, é um livro de autor (sem editora). Como foi o seu processo de produção?

Centro foi o resultado do meu MFA [Master of Fine Arts] na Hartford Art School. O programa tem como foco o livro e Centro foi meu trabalho de graduação. Foi um processo muito intenso de produção constante, críticas contínuas e muitos bonecos. Quando terminei o mestrado sabia que o livro ainda não estava pronto e fotografei por mais alguns meses. O boneco que apresentei como o trabalho de conclusão tinha 41 imagens, um ano depois publiquei Centro com 21 fotografias sendo que 05 foram produzidas nesse intervalo. Mais uma vez um processo longo de maturação e revisão até encontrar o formato final.

Quando terminei a edição da sequência comecei a trabalhar no livro. Tinha o desejo de me envolver em todas as etapas de produção e por isso optei pela publicação independente, acreditava muito no projeto e queria soltar esse filho no mundo. O livro foi muito pensado como objeto, ele valoriza a experiência direta com os materiais que o constituem e existe uma preocupação em criar uma vivência do próprio livro como estrutura e espaço. Foi um momento de muito aprendizado. Para a realização de Centro, além de contar com inúmeras conversas com amigos e professores do mestrado, trabalhei com Beatriz Matuck no design da publicação.


Em entrevista que fiz com você em 2014 sobre o ensaio 10 anos, amanhã, você fala: “sempre pensei em uma estrutura narrativa sequencial tendo o livro como o suporte para esse percurso”. Ainda pensa assim?

Ainda tenho um interesse enorme pelo livro como suporte, como objeto de diálogo. A estrutura do livro é fundamental no meu processo – o livro não é só o suporte final, mas entra como ferramenta de edição e entendimento já no inicio dos meus trabalhos. Tenho o hábito de criar cadernos e bonecos, pequenas sequências que vão me guiando durante a produção de novos ensaios. Tenho pensado muito sobre o uso da palavra narrativa relacionada aos meus trabalhos. Entendo que minhas séries são proposições enxutas, são sequências curtas de imagens que construo não como narrador, mas como alguém que propõe um percurso e cria um espaço de vivência e observação. Tento produzir imagens que proponham uma experiência do espaço fotografado e do meu encontro com ele, e o livro me ajuda a materializar essa experiência.

Recentemente li um conto de Valter Hugo Mãe, “O Rapaz que habitava os livros”, e entre muitos trechos lindos do texto ele diz: “Depois, compreendi, era o modo silencioso das conversas. Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam.”


Num artigo de 2016, a antropóloga Georgia Quintas diz que “ao documentar, inclusive a subjetividade, ele exercita em sua fotografia a vibração (de ar sereno) de quem enxerga o impulso velado do espaço contido no tempo”. Considero o seu trabalho pontuado pela coerência. Como manter-se fiel ao seu processo de criação, aos seus interesses verdadeiros e não se contaminar pelos modismos e fáceis caminhos?

Primeiro, obrigado! Fico feliz que você tenha essa percepção. É difícil ter esse entendimento do próprio trabalho, nunca tenho essa certeza, é sempre só uma intuição. Acho que me manter conectado a uma busca genuína através da minha produção é um embate constante que não se coloca só na relação com o trabalho, mas sim com a vida como um todo. A fotografia é parte fundamental da maneira como me relaciono com o mundo, ocupo meu tempo e percebo o espaço em que vivo e sendo assim só consigo seguir produzindo se realmente me sinto envolvido.

O próprio gesto de carregar uma câmera de grande formato pela cidade, decidir parar e fotografar determinada cena ou objeto já pressupõe uma conexão ou embate verdadeiros. Uma outra questão que acho fundamental é que sigo fotografando livremente, meus trabalhos surgem da observação, da presença física na rua. Não começo os trabalhos a partir de ideias, o entendimento se constrói com o tempo e através da insistência. Acredito muito na intuição e no desejo que me levam a produzir uma fotografia, depois posso pegá-la na mão e pensar sobre ela e, quem sabe, ser levado para um novo trabalho.


Quais foram os livros de fotografia fundamentais no seu aprendizado e repertório?

Difícil ter clareza dessa influência, mas alguns livros estão sempre comigo e volto neles constantemente:

– Michael Schmidt: Berlin Nach 1945
– Gabriel Orozco: Photographs
– Moyra Davey: Long Life Cool White: Photographs and Essays by Moyra Davey
– Jason Fullford: The Mushroom Collector
– Philipi-Lorca diCorcia: Storybook Life
– Robert Frank: Come Again
– Sophie Ristelhueber: Fait
– Rinko Kawauchi: Utatane
– Robert Adams: A portrait in Landscapes e What We Bought: The New World: Scenes from the Denver Metropolitan Area, 1970–1974
– Alessandra Sanguinetti: On the Sixth Day

   

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ATUALIZAÇÃO
* Texto originalmente publicado em 04 de junho de 2020.
* Atualizado em 08 de fevereiro de 2023.

 

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