The Pencil of Nature1 de Henri Fox Talbot (1800-1877), publicado entre 1844 e 1846, é considerado o segundo livro de fotografia publicado no mundo2. No livro, Talbot exemplifica diversos usos possíveis para a Fotografia. Para o autor, a Fotografia seria uma arte documentária, voltada ao registro do mundo de modo mais nítido e objetivo do que o desenho.
Sobre o terceiro calótipo do primeiro fascículo do livro, Talbot conta que se trata de uma coleção de artigos chineses. “Os artigos representados nesta placa são numerosos: mas, por mais numerosos que sejam os objetos - por mais complicado que seja o arranjo - a câmera os retrata todos de uma vez. Pode-se dizer que faz uma imagem de tudo o que vê” (TALBOT, 1844, p.19, t.n.). A fotografia, especula Talbot, permitiria a realização de um inventário visual da coleção e poderia ser usada inclusive como prova documental da posse do objeto pelo colecionador.
Quanto mais estranhas e fantásticas as formas de seus velhos bules de chá, maior a vantagem de ter suas fotos dadas em vez de suas descrições. E se um ladrão posteriormente roubar os tesouros - se o testemunho mudo da imagem fosse apresentado contra ele no tribunal - certamente seria uma evidência de um tipo novo; mas o que o juiz e o júri podem dizer a ele, é um assunto que deixo para a especulação daqueles que possuem perspicácia jurídica. (TALBOT, 1844, p.19, t.n.)
PLATE III. ARTICLES OF CHINA.
Henri Fox Talbot. The pencil of nature. 1844-1846.
Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/267022
O que Talbot parece não perceber é que esta fotografia é, em si, uma metáfora visual da coleção de imagens que compõem seu livro, totalizando 24 calótipos distribuídos em 6 fascículos, publicados entre 1844 e 1846. Assim, a fotografia que documenta uma coleção é ela própria objeto de uma coleção arquivada em um livro.
Como colecionador, Talbot é o proprietário dos objetos de sua coleção. É para Talbot que os calótipos existem, como sua propriedade. Como arquivista, Talbot atribui sentidos às imagens, ordena-as e as torna disponíveis ao público. Ao lermos os textos que legendam cada uma delas, sabemos que cada imagem é a demonstração de um uso possível da Fotografia. É nesse sentido que somos orientados a ver e compreender as imagens. A Fotografia, por sua vez, é a técnica que permite a produção de imagens-documentos, ou simplesmente fotografias, colecionáveis. The Pencil of Nature é um lugar para a exibição dessa coleção de fotografias, em uma dada ordem, atreladas a determinados sentidos, escritos, e para um determinado público. Este livro possui várias das características que atribuímos a um arquivo.
Walter Benjamin, em um texto de cunho pessoal, conta sobre as relações entre o colecionador e sua coleção, destacando o caráter fetichista delas: “...uma relação com as coisas que não põe em primeiro plano o seu valor funcional, portanto sua utilidade, a sua serventia, mas que as estuda e as ama como o cenário, como o teatro de seu destino” (BENJAMIN, 2012, p.234). O autor pontua que o maior fascínio para o colecionador seria o ato de colocar a peça em sua coleção, esse seria o momento de sua última excitação – “a excitação da aquisição” (Id.).
O ato de adquirir, de tomar posse, do colecionador nos parece análogo ao ato de fotografar, como entendido por Sontag (2004, p.14): “fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. (...) Imagens fotografadas não parecem manifestações a respeito do mundo, mas sim pedaços dele, miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer ou adquirir”. Tal como Bazin (1993), Sontag também se refere ao ato de fotografar não como uma relação estética com o mundo, mas como uma relação psicológica, “de substituição do real pelo seu duplo” (BAZIN, 1993, p.4). Assim, enquanto o colecionador adquire objetos, o fotógrafo adquire pedaços do mundo por um processo psicologizante, simbólico, de substituição do visto pelo fotografado.
Para Sontag, o ato de fotografar é como a tomada de posse de um território e pode ser exemplificado pelas relações com o turismo moderno em que “viajar se torna uma estratégia de acumular fotos” (SONTAG, 2004, p.20). Com isso, podemos dizer que a Fotografia torna não só os territórios, mas também os corpos que os habitam simbolicamente colecionáveis. Como fotografias, corpos e territórios (seus lugares e objetos culturais) são objetificados e se tornam mais facilmente deslocáveis, estudáveis, são colecionados como pequenos tesouros, pequenas conquistas. O mundo se converte em imagens-documentos colecionáveis.
Um dos primeiros exemplos da Fotografia como essa tomada de posse simbólica do mundo pode ser encontrado no livro Égypte, Nubie, Palestine et Syrie3 (1852), de Maxime Du Camp (1822-1894). O escritor, apaixonado por viagens, troca o desenho pela fotografia na representação das paisagens e monumentos vistos em suas viagens. O livro em questão é fruto de uma missão arqueológica para o ministério francês de educação.
Trechos selecionados do álbum Égypte, Nubie, Palestine et Syrie : dessins photographiques recueillis pendant les années 1849 , 1850 et 1851, publicado por Maxime Du Camp em 1852.
Disponível na íntegra em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8626070m
A ideia de que o mundo é uma matéria bruta a ser conquistada, dominada e explorada não é novidade em 1852. A colonização das Américas teve início cerca de 300 anos antes. No que conhecemos por Europa, povos inimigos se uniram, nações se formaram, disciplinas científicas e documentos jurídicos e foram fabricados para dar conta da empreitada colonial. É nesse contexto que são criadas as condições para a invenção e o desenvolvimento da Fotografia.
O livro Égypte, Nubie, Palestine et Syrie é exemplar quanto ao papel da Fotografia em tornar o Egito colecionável nos momentos que antecedem a colonização britânica no território. As disputas entre Inglaterra e França pela comercialização no Egito Moderno, sob domínio otomano, datam de meados do séc. XVIII. Em 1798, Napoleão Bonaparte fez inclusive uma investida militar para tentar acabar com o comércio inglês na região, tendo fugido do Egito em 1799, derrotado por tropas otomanas e inglesas. Estes últimos, por sua vez, foram expulsos do Egito por volta de 1807. A administração otomana que se seguiu, contudo, tornou o Egito cada vez mais economicamente dependente da Grã-Bretanha e da França. Essa era a situação entre os anos de 1847 e 1850, período em que Maxime Du Camp esteve no Egito a mando da França. Em 1882 o Egito foi militarmente ocupado por tropas britânicas, tornando-se protetorado britânico até o ano de 1922.
Em que pese a posse fotográfica do Egito por europeus, evidenciada no livro de Du Camp, a pilhagem de objetos por parte das potências imperialistas data da invasão de Bonaparte, sendo que muitos dos objetos saqueados naquele momento ficaram em posse dos ingleses, como por exemplo a Pedra da Roseta4, que faz parte da coleção do Museu Britânico em Londres. O Louvre, por sua vez, é o museu que detém uma das maiores coleções de artefatos históricos egípcios no mundo, o seu Departamento de Antiguidades Egípcias foi inaugurado em 1827. Pouco tempo depois, o Collège de France criou a disciplina de egiptologia (estudo da cultura egípcia), como um ramo da arqueologia, para o arqueólogo e decifrador de hieróglifos, Jean-François Champollion (1790-1832).
Uma série de empreendimentos imperiais organizados para saquear as culturas locais em nome de sua salvação universal começou com a expedição de Napoleão ao Egito de 1798 a 1801, que legitimou a invasão, por acadêmicos e soldados, de um lugar cujas nuances sociais, culturais, e tecidos religiosos foram destruídos sob o pretexto de preservar seus artefatos. (AZOULAY, 2019, p.93. t.n.)
Um outro exemplo da pilhagem do Egito, que antecipa a colonização britânica, pode ser encontrado no Brasil. Dom Pedro II, imperador e o primeiro fotógrafo brasileiro, também realizou expedições ao Egito, voltando de lá com fotografias e artefatos históricos diversos. Estes últimos estavam sob guarda do Museu Nacional desde 1889 até sua destruição no incêndio de 2 de setembro de 2018. Existem várias outras coleções fotográficas do Egito formadas no mesmo período. Menciono mais alguns livros de fotografia como exemplos: Le Nil; monuments; paysages; explorations photographiques, de John Beasley Greene (1854); Égypte et Nubie, de Félix Teynard (1858); Egypt, Sinai and Jerusalem, de Francis Frith (1862 – 1863) e Egypte and Palestine, de Francis Frith (1858 – 1859); e o álbum de fotografias Basse Egypte5 produzido por J. Pascal Sébah (1823-1886), na década de 1870, para o Imperador do Brasil.
Basse Egypte, publicado por J. Pascal Sébah na década de 1870.
Disponível em: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=6487
De volta às considerações de Azoulay, se a pilhagem de objetos antecipa a destruição cultural de um povo para fins da dominação imperial, a fotografia, segundo a autora, realizaria a mesma lógica de antecipar a extinção de pessoas e territórios, resgatando-os simbólica e visualmente, tornando-os objetos, imagens-documentos, dignos de coleção como objetos históricos, isto é, coisas do passado.
A serviço da colonização, a coleção não é apenas fetiche, como em Benjamin; ou só a posse simbólica do mundo, como em Sontag. Ela é também a apropriação da produção cultural de um povo. “Apropriação cultural é um mecanismo de opressão por meio do qual um grupo dominante se apodera de uma cultura inferiorizada, esvaziando de significados suas produções, costumes, tradições e demais elementos” (WILLIAM, 2019, p.29). E é, ao mesmo tempo, a fixação dessa produção cultural como matéria pertencente ao passado. A temporalidade imperial sela a cultura contemporânea daqueles que serão colonizados como passado.
A coleção colonial, portanto, opera um deslocamento espacial e temporal do mundo dos outros, seja fisicamente por meio da pilhagem de seus artefatos culturais ou simbolicamente pela produção das imagens-documentos. Neste último caso, povos e territórios são resgatados figurativamente como matéria do passado, dignos de estudo e conservação. Foi assim que o Egito se tornou propriedade de colecionadores britânicos e franceses, bem antes da efetiva dominação de seu território e habitantes.
Diante disso, de volta à Fotografia, é preciso dizer que, para além da história da Fotografia como uma técnica de produção de imagens que se diferencia do desenho e da pintura, seja por sua objetividade (narrativa que apresentamos explicitamente em Talbot e Maxime Du Camp) ou por sua aparência de objetividade (narrativa implícita em Sontag), é preciso uma história da Fotografia que a insira no contexto global do sistema capitalista moderno/colonial da qual ela é produto e produtor. Os primeiros fotógrafos não foram gentes do povo, escravizados, camponeses ou proletários, por exemplo. Mas pessoas, em sua maioria homens brancos europeus, com poder aquisitivo, patrocínio e tempo suficiente para se dedicar à pesquisa, ao desenvolvimento da tecnologia e da prática fotográfica.
O Egito não se tornou visível fotograficamente para que seus habitantes pudessem conhecer melhor o seu território, para estudá-lo, apreciá-lo. As fotografias não foram realizadas para fins de emancipação do povo egípcio. Maxime Du Camp fotografou o Egito numa expedição arqueológica a serviço do Estado francês. O Egito era, a um só tempo, objeto de estudo científico e de conquista imperialista; e essas duas coisas não são separadas, independentes. O interesse imperial estava implicado no científico, na medida em que um financiava e outro oferecia a justificativa racional e moral necessária à invasão e dominação colonial. A Fotografia estava sendo usada como uma tecnologia imperial. Ela contribuiu para naturalizar entre seu público, no caso os cidadãos europeus, a posse do território dos outros, daquele a ser conquistado, explorado e destruído, como se fosse uma matéria bruta qualquer, antecipando, simbolicamente, a violência da colonização.
Nós podemos continuar a ver fotografias, a falar e escrever sobre Fotografia e fotografias repetindo e reproduzindo as narrativas imperiais ou não. Podemos seguir a trilha de Talbot e dizer que a fotografia prova a posse da coleção. Ou podemos questionar essa posse. Revemos neste momento a fotografia de Dom Pedro II. A comitiva do imperador encontra-se sentada em cadeiras. Em pé e acocorados, encontram-se habitantes locais, possíveis guias e tradutores. Percebemos as diferenças pelas vestimentas e pela cor da pele dos indivíduos fotografados. Esta imagem pode até ser uma fotografia de viagem, tal como vem sendo lida desde sua publicação em Basse Egypte. Mas, façamos um gesto de transgressão e insiramos esta imagem em uma nova composição.
A comitiva de Dom Pedro II em visita ao Egito (1871).
J. Pascal Sébah. Basse Egypte. [s.l.]: Librairie Auguste-Fontaine, [187-]
Disponível em: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=6487
Primeiro, retiremos essa camada de significados “fotografia de viagem” que se adere à imagem como uma segunda pele (AZOULAY, 2014). Segundo, contextualizemos os eventos que tornam possível a existência desta fotografia, observando o evento da fotografia em si, os atores envolvidos, o lugar e o que está sendo mostrado na imagem, mas também o quadro político internacional (moderno/colonial) em que se insere o Egito naquele momento. E, por fim, aproximemos esta fotografia aos demais artefatos egípcios trazidos pelo imperador ao Brasil e aos demais objetos culturais subtraídos do Egito no mesmo século pela França e Inglaterra. O que esta composição que criamos nos mostra? Que é possível ler esta fotografia de uma outra maneira, como elemento e prova da pilhagem imperial.
Com isso, esperamos ter mostrado um dos usos da Fotografia, o de prova documental ou, nas palavras de Talbot, “testemunho mudo” contra o crime de roubo. Só que, ao contrário do previsto pelo autor, no caso exemplificado, a coleção é fruto de roubo, o colecionador é o ladrão e o proprietário é povo colonizado.
Marina Feldhues
Artista visual, fotógrafa e pesquisadora do PPGCOM-UFPE.
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NOTAS
1. Disponível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/33447 e em https://www.metmuseum.org/art/collection/search/267022 . Acesso em: 28 set. 2020.
2. O primeiro livro de fotografia é Photographs of British algae: Cyanotype Impressions (1843 – 1853), da botânica Anna Atkins.
3. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8626070m. Acesso em: 28 set. 2020.
4. Mais informações em: https://sketchfab.com/britishmuseum. Acesso em: 30 ago. 2020.
5. Disponível em: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=6487. Acesso em: 20 set. 2020.
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REFERÊNCIAS
Azoulay, A. (2014). Historia Potencial y otros ensayos. México: Taller de Ediciones Económicas; Consejo Nacional para la Cultura y las Artes/ Dirección General de Publicaciones.
Azoulay, A. (2015). Civil imagination: a political ontology of photography. London; New York: Verso.
Azoulay, A. A. (2019). Potential History: unlearning imperialism. London, New York: Verso.
Bazin, A. (1993). Ontologia da imagem Fotográfica. In O que é Cinema?. Lisboa: Livros Horizonte.
Benjamin, W. (2012). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense.
Du Camp, M. (1852). Égypt, Nubie et Syrie. Paris: Gide et J. Baudry.
Sébah, J. P. (187-). Basse Egypte. Paris: Librairie Auguste-Fontaine.
Silva, D. F. (2007). Toward a global idea of race. London; Minneapolis: University of Minnesota Press.
Silva, D. F. (2019). A dívida impagável. São Paulo: Edição do autor.
Sontag, S. (2004). Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras.
Talbot, H. F. (1844). The pencil of nature. London: author.
William, R. (2019). Apropriação cultural. São Paulo: Pólen.
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ATUALIZAÇÃO
* Publicado originalmente em 22 de outubro de 2020.
* Atualizado em 21 de fevereiro de 2023.